terça-feira, janeiro 08, 2013

Ao Rui

Um abraço camarada à familia.

Mário Pinto

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Rui Paz, compositor e professor de música


Antes do dia 25 de Abril de 1974, os jovens eram obrigados a ir para a guerra onde muitos morriam ou ficavam estropiados para toda a vida, sem olhos, sem braços e sem pernas.

Rui Paz, que os nossos leitores conhecem pelo seu trabalho enquanto membro do Conselho das Comunidades Portuguesas, é músico, compositor e professor de harpa. É também um nome ligado a um movimento de protesto contra a guerra colonial que se manifestou através da ocupação de uma igreja em Lisboa.
Neste mês em que se comemora mais um aniversário do 25 de Abril, o PP entrevista Rui Paz por ter participado num dos meus simbólicos movimentos de protesto contra a guerra colonial e e ser autor, conjuntamente com a poetisa Sophia de Mello Breyner , de uma canção contra a guerra que ficará ligada à libertação de Portugal do regime ditatorial que vigorou até ao 25 de Abril de 1974.

PP: Quer partilhar com os leitores o seu percurso como músico, compositor e professor de um instrumento original como é a harpa?

Rui Paz: Desde muito cedo, tinha cinco anos, comecei a aprender música, a tocar a piano e a cantar em coros. Aos 12 anos já sabia que queria estudar música no Conservatório em Lisboa. Como era necessário tocar dois instrumentos comecei também a aprender harpa. Finalmente acabei por concluir o curso do Conservatório Nacional com 20 anos. Como bolseiro da Fundação Gulbenkian aperfeiçoei-me em harpa no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris e estudei musicologia na Universidade de Vincennes, tendo posteriormente actuado na Orquestra da Fundação Gulbenkian e leccionado no Conservatório Nacional em Lisboa


PP: E como é que veio para Alemanha e ser hoje um professor deste instrumento neste país ?

R.P.: Vim para a Alemanha no início dos anos oitenta concluir o mestrado em Ciências Musicais na Universidade de Colónia e frequentar o curso de composição algorítmica (informática) no Conservatório Robert Schumann em Düsseldorf.


PP: Em que escola ensina e quem são os são alunos?

R.P.: Logo que cheguei fui imediatamente convidado para leccionar harpa na Folkwang Musikschule em Essen e dirigir o teatro acústico, um projecto interdisciplinar que envolvia instalações musicais, música electrónica e música ao vivo. Os meus alunos são jovens músicos que actuam não só na Alemanha mas também no estrangeiro, na Finlândia, Rússia, Polónia, Itália, Hong-Kong ou Singapura. Neste momento a classe de harpa da Folkwang Musikschule é a maior e a mais premiada da Alemanha.


PP: Fale-nos um pouco do instrumento. Que capacidades se deve ter para tocar esse instrumento?

R.P.: A primeira dificuldade é que se trata de um instrumento caro. Uma harpa de concerto custa hoje a partir de 15 mil euros. A técnica e o sistema da escala nas cordas são muito semelhantes às do piano. Podemos dizer que nas 47 cordas encontram-se as teclas brancas do piano e que as teclas pretas são feitas através de um sistema de 7 pedais, cada um com três posições (sons diatónicos, sustenidos e bemóis). De resto é apenas necessário ter-se alguma musicalidade e capacidade motora nas mãos, nos dedos e nos pés. Eu costumo dizer aos meus alunos que os harpistas a exemplo dos futebolistas também tocam (jogam) com os pés.


PP: Em Portugal, o seu nome está ligado a um movimento de vigília numa igreja em Lisboa contra a guerra que o antigo regime mantinha nas antigas colónias. Quer contar-nos como foi?

R.P.: Eu era um dos poucos alunos do Conservatório que na altura me interessava pela situação politica, pois frequentava simultaneamente a Faculdade de Direito de Lisboa. Nalguns concertos ou acções de protesto sobretudo contra a guerra colonial as pessoas vinham ter comigo para eu ajudar na parte musical.
Na preparação de uma vigília de protesto contra a guerra colonial na passagem do ano de 1968/69, um grupo de cristãos progressistas pediu-me para compor cânticos que as pessoas pudessem cantar imediatamente sem ensaios pois a vigília estava a ser preparada clandestinamente para evitar a repressão policial. Fizeram-se várias reuniões clandestinas em casa do arquitecto Nuno Teotónio Pereira e na noite de 31 de Dezembro os participantes na vigília começaram a chegar ao café Nicola no Rossio e a ocupar as mesas que iam ficando livres. A certa altura tinham ocupado já todo o café e antes da meia-noite começámos a sair em pequenos grupos para não dar nas vistas. Depois de atravessarmos o Rossio, entrámos na igreja de S. Domingos onde o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira, que era amigo pessoal do ditador Salazar então já falecido e fervoroso adepto do fascismo e da guerra colonial estava a acabar de celebrar uma missa com meia dúzia de velhinhas. O mais intrigante para o cardeal era o facto de que quanto mais a missa se aproximava do fim mais a igreja se enchia de gente inclusive jovens.


PP: Também está ligado a uma composição musical com texto de Sofia de Mello Breyner que na altura se cantava como manifestação contra a guerra.

R.P.: Um dos cânticos entoados na vigília de S. Domingos foi a “Cantata da Paz”. A letra foi escrita pela poetiza Sophia de Mello Breyner que era minha vizinha no bairro da Graça em Lisboa. Durante várias semanas trabalhámos juntos. A Sophia recitava os versos que lhe iam surgido em voz alta e eu tentava descobrir os ritmos e as melodias mais adequadas de modo a que os participantes ouvindo-as uma vez pudessem cantar logo lendo só o texto. A “Cantata da Paz” acabou por se tornar numa espécie de hino de protesto dos cristãos que estavam contra o regime e a guerra colonial e apesar de proibida na rádio, passou a ser regularmente cantada nas celebrações da capela do Rato e posteriormente gravada pelo padre Fanhais que também a tinha cantado na Vigília de S. Domingos.


PP: O Rui Paz ficou ligado ao movimento de resistência contra o regime que foi derrubado a 25 de Abril de 1974. Hoje, para quem tem 30 ou menos anos não faz ideia de como era esse regime. Quer contar muito resumidamente como se processava essa resistência?

R.P.: Toda a actividade política tinha de ser organizada clandestinamente. Basta dizer que os partidos políticos estavam proibidos. A policia política, a PIDE-DGS tratava de organizar ficheiros, prender, torturar ou assassinar as pessoas que se opunham ao fascismo e à guerra colonial. Greves e protestos dos trabalhadores eram proibidos e violentamente reprimidos. A emigração era feita na maior parte dos casos “a salto”, isto é, atravessando a fronteira de Espanha clandestinamente por serras e montes para não se ser apanhado pela polícia. Os jovens eram obrigados a ir para a guerra em Angola, Moçambique e Guiné onde muitos morriam ou ficavam estropiados para toda a vida, sem olhos, sem braços e sem pernas. As prisões estavam cheias de presos políticos. Quando surgiu a Revolução do 25 de Abril, só os 26 membros do Comité Central do Partido Comunista Português em exercício na clandestinidade tinham passado no total 250 anos nas prisões do fascismo. É importante que a juventude conheça a nossa história para que Portugal não volte a passar por tanto sofrimento e para que a democracia instaurada com o 25 de Abril possa ser aprofundada no sentido de uma sociedade mais justa e mais fraterna ao serviço de todo o povo português e não de meia dúzia de banqueiros como acontecia no tempo do fascismo.


PP: O facto de estar empenhado aqui na Alemanha nas questões da comunidade lusa quer dizer que a sua luta iniciada antes do 25 de Abril de 1974 não está concluída?

R.P.: É evidente que a Revolução do 25 de Abril tem um valor universal ao ter instaurado as liberdades políticas, ao concretizar uma série de conquistas económicas, sociais e culturais e ao acabar com a guerra colonial em África, aspirações do povo português mas que hoje são comuns a todos os povos do mundo. Hoje, vivemos cada vez mais uma situação em que os valores e as conquistas democráticas, da justiça social e da paz se encontram em perigo. O mundo é cada vez mais governado pelo poder do dinheiro e não pelas legitimas aspirações dos povos. Enquanto portugueses com uma experiência tão rica de luta pela liberdade temos o dever de transmitir aos mais jovens os sentimentos democráticos e patrióticos que tornaram possível a Revolução de Abril de 1974. Mostrar-lhes que vale sempre a pena lutar por um ideal que seja justo e libertador.