terça-feira, setembro 30, 2008

O socialismo foi traído - Entrevista com Roger Keeran e Thomas Kenny (I)

Roger Keeran e Thomas Kenny são militantes comunistas norte-americanos. Roger é historiador com obra publicada e professor universitário. Thomas é economista. Amigos de longa data, lançaram-se juntos no estudo e aprofundamento das causas que levaram à derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo. As reveladoras conclusões a que chegaram estão expostas no seu livro Socialismo Traído, recentemente publicado pelas Edições Avante!Desde quando e porquê se interessaram pela investigação das causas da derrota do socialismo e do colapso da União Soviética? Thomas Kenny – Tanto eu como o Roger considerámos os acontecimentos entre 1989 e 1991, o colapso do socialismo europeu, como um desastre titânico. Após 1991 pensámos que a história do socialismo suscitaria o interesse de muitos investigadores e que haveria uma avalanche de publicações sobre o assunto. Mas enganámo-nos, não houve nada, apenas silêncio. Apesar de este não ser o campo de trabalho de nenhum de nós, decidimos especializar-nos nesta área para fazer a investigação, lendo toda a literatura que encontrámos disponível. Trabalhámos durante quatro anos, entre 1991 e 2004, ano em que publicámos o livro nos Estados Unidos com as conclusões do estudo.Mas o que nos levou realmente a tentar determinar as causas do colapso foi o facto de a teoria em que acreditamos não «autorizar» tal situação. O colapso do socialismo estava em contradição com tudo aquilo em que acreditávamos. Nunca pensámos que fosse possível destruir o socialismo, antes pelo contrário acreditávamos firmemente que o socialismo iria desenvolver-se e crescer continuamente.O materialismo histórico estaria afinal errado?…TK – Não. Estávamos certos de que, enquanto método, o materialismo histórico permanecia válido, mas interrogámo-nos por que é que nada se disse sobre isto? Precisámos de muitas leituras e mais de um ano e meio até começarmos a identificar algumas peças deste puzzle e nos darmos conta do peso da chamada «segunda economia» na União Soviética, factor que se revelou decisivo nas nossas conclusões.Roger Keeran – Nós acreditávamos que o socialismo do século XXI precisava de saber o que é que tinha acontecido ao socialismo do século XX. Depois da Revolução de Outubro, o acontecimento mais importante do século XX foi, talvez, a destruição da União Soviética e do socialismo na Europa.Existe a ideia de que a perestróika constituiu uma resposta a uma crise económica, social, política, cultural, ideológica, moral e partidária, consequência de graves deformações ao ideal socialista, de distorções, erros e atrasos acumulados ao longo de muitos anos. Afirma-se que o «modelo» soviético de socialismo havia esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento, tornando-se necessário proceder a reformas radicais. Querem comentar?RK – É natural que perante um passo atrás tão tremendo as pessoas tendam a reagir com exagero na avaliação das suas causas. Não havia crise nenhuma na União Soviética, havia problemas, mas não uma crise… Mas para a maioria das pessoas é uma evidência de que só uma profunda crise poderia provocar tal catástrofe...RK – Acho que podemos sintetizar o nosso ponto de vista do seguinte modo: não foi a doença que matou o socialismo mas sim a cura. Ao contrário do que muitos pensam, não havia sinais de uma crise: não havia desemprego, inflação, manifestações, etc. Mas isto não significa que não houvesse problemas. É claro que os havia, designadamente no plano económico, muito deles agravados no período de Bréjnev, cuja liderança se caracterizou por uma passividade e falta de vontade para enfrentar os problemas. Neste sentido podemos dizer que houve uma espécie de «estagnação», apesar de não gostarmos desta palavra, já que significa ausência de crescimento, o que não corresponde à verdade.Os problemas económicos agravaram-se a partir de que altura?TK – A taxa de crescimento da economia começou a abrandar a partir da época de Khruchov, passando de 10 a 15 por cento ao ano para cinco, quatro e três por cento. Houve uma clara desaceleração, mas continuou a observar-se um crescimento respeitável segundo os padrões capitalistas, o que permitiu elevar continuamente o nível de vida na União Soviética. Em 1985 o nível de vida tinha atingido o seu ponto máximo.No plano das nacionalidades, não se observavam conflitos ou contradições nacionais relevantes entre os povos da União Soviética. Havia problemas, dificuldades, mas não uma crise.No plano internacional, a URSS estava sob pressão do imperialismo norte-americano. A administração Reagan aumentou a pressão militar, económica e diplomática. Também identificámos problemas no interior do partido que exigiam reformas. Mas a questão principal era outra.(210+15 nota rodapé)«Só com Gorbatchov a direita triunfou»Se, como afirmam, o socialismo não estava em crise, qual a origem das reformas destruidoras realizadas no final dos anos 80 na URSS?TK - Ao longo da história da União Soviética digladiaram-se sempre duas tendências na política soviética: uma ala de direita, que defendia a incorporação de formas e ideias capitalistas, e uma ala de esquerda que apostava na luta de classes, num partido comunista forte e na defesa intransigente das posições da classe operária. De resto, encontramos estas duas correntes mesmo antes da revolução de Outubro. Os mencheviques, por um lado, e os bolcheviques por outro. Mais tarde esta luta é polarizada por Bukhárine e Stáline, Khruchov e Mólotov, Bréjnev e Andrópov, Gorbatchov e Ligatchov. Toda a história da URSS pode ser vista à luz da luta entre estas duas correntes. No entanto, só com Gorbatchov a ala direita obteve um triunfo completo.RK – Bréjnev, com a sua política de estabilidade de quadros e o seu receio de fazer ondas, deixou uma direcção extremamente envelhecida e permitiu que se agravassem vários problemas na economia e na sociedade. A carência de alguns produtos, sobretudo os de alta qualidade, o desenvolvimento da «segunda economia», a corrupção de dirigentes do partido, tudo isto desagradava às pessoas. Quando Gorbatchov prometeu resolver estes problemas, quase toda a gente concordou. Parecia que finalmente tinha aparecido alguém com vontade de mudar as coisas para melhor.Todavia, alguns apontam como causas do colapso a degeneração do partido comunista, o facto de o trabalho colectivo ter sido substituído a dada altura por um pequeno círculo de dirigentes e mesmo por um só dirigente individualmente; a democracia partidária ter sido estrangulada por um sistema burocrático centralizado; a indesejável fusão e confusão entre as estruturas do partido e do Estado; o afastamento do partido das massas; o fracasso da democracia socialista que era apresentada como um tipo superior de democracia. De acordo com esta tese, o povo soviético foi despojado do poder político e isso foi fatal para o socialismo. Concordam?TK - A visão de que a União Soviética sofria de um défice democrático e de um excesso de centralização está muito espalhada entre socialistas reformistas, sociais-democratas, historiadores burgueses e mesmo entre alguns comunistas, mas, na nossa opinião, é uma visão errada e exagerada dos problemas da democracia soviética.Apesar de alguns problemas, a democracia soviética tinha uma grande vitalidade. Cerca de 35 milhões de trabalhadores participavam directamente no trabalho dos sovietes, que eram instituições de poder que tomavam decisões efectivas, 163 milhões de trabalhadores estavam sindicalizados, o partido tinha 18 milhões de militantes, a democracia tinha outras instituições como as secções de cartas do leitor em todos os jornais, as organizações de mulheres e de jovens. É verdade que todas estas instituições tinham insuficiências, poderiam funcionar melhor e de forma mais efectiva, mas não é verdade que fossem instituições de fachada.As pessoas que atacaram o nosso livro acreditam, na sua maioria, que a falta de democracia e o excesso de centralização foram as causas do colapso soviético. Curiosamente, este sempre foi o principal argumento da burguesia para difamar o regime soviético muito antes da chegada de Gorbatchov. Na nossa opinião é incorrecto acusar a democracia soviética de ter levado ao colapso.RK – Muitas dessas críticas radicam na concepção burguesa de democracia. Na verdade a União Soviética sempre foi acusada de não ter uma democracia burguesa, de não ter partidos concorrentes. Todavia, as formas de democracia socialista, sem serem perfeitas, eram sob muitos aspectos muito mais ricas do que a democracia burguesa. Penso que o recente conflito na Geórgia nos fornece um exemplo a este respeito. Na antiga União Soviética, a Ossétia do Sul era um território autónomo onde as minorias étnicas tinham as suas escolas, língua, cultura. Após a desagregação da URSS, a «democracia» georgiana aboliu o estatuto de autonomia dos ossetas, o que agravou as tensões e desembocou numa guerra na região.TK – Houve razões históricas que determinaram que na URSS apenas houvesse um partido. Logo a seguir à revolução os restantes partidos combateram o poder soviético, os socialistas revolucionários abandonaram o governo e tudo isso levou a que apenas ficassem os bolcheviques. A maioria dos países socialistas europeus tinha vários partidos, embora o papel dirigente do partido da classe operária fosse salvaguardado. A existência de um só partido acentuou a ideia de fusão entre o partido e o Estado, mas não vemos que isso possa ter constituído uma causa do colapso.Mas as insuficiências da democracia soviética não terão impedido o povo de defender as conquistas revolucionárias, a URSS e o socialismo?TK – Esse é o principal argumento dos que afirmam que havia um défice democrático. Porque é que o povo não defendeu o socialismo? Perguntam dando como resposta a falta de democracia e o excesso de centralização. Em primeiro lugar, não é verdade que não tenha havido resistência. Houve, basta lembrar que, no referendo de 1991, a maioria esmagadora dos soviéticos (75 por cento) votou a favor da manutenção da URSS.Por outro lado, para percebermos porque é que essa resistência não foi suficientemente forte para derrotar a contra-revolução, temos de ter em conta o seguinte: Gorbatchov e Iákovlev, ao mesmo tempo que prometiam o aperfeiçoamento do socialismo, com mais liberdade e democracia, destruíram num curto espaço de tempo as instituições através das quais a base do partido e o povo podiam expressar a sua vontade. A organização do partido foi desmantelada, os jornais e todos os meios de informação foram entregues a anticomunistas. De repente desapareceram os mecanismos e formas habituais de expressão democrática popular. Regressando à economia, ficou-nos da perestróika a ideia de que o excesso de centralização, de planificação e de burocracia foram os causadores dos atrasos no desenvolvimento económico. Alguns acrescentam que houve uma estatização exagerada da economia, que as diferentes formas de propriedade deveriam ter sido mantidas e que o papel do mercado foi claramente subestimado durante o processo de construção do socialismo. Qual é o vosso ponto de vista?RK – Penso que temos de começar por fazer a seguinte observação que ninguém contesta: a propriedade social dos meios de produção na União Soviética permitiu os mais rápidos ritmos de crescimento industrial jamais registados em qualquer época da história. Isso ocorreu nos anos 30, mas também a seguir à guerra até meados dos anos 50. Em quatro ou cinco anos, a União Soviética conseguiu recuperar da devastação provocada pela II Guerra Mundial, que deixou em ruínas um terço das cidades e um terço das indústrias.Por tudo isto, nunca pensámos que a propriedade estatal, a centralização e a planificação pudessem ter causado o colapso. Mas havia algumas questões que precisavam de ser explicadas. Porque é que o crescimento começou a declinar nos anos 60 e 70. A economia continuava a crescer, mas qual era a razão da desaceleração? Os críticos da planificação centralizada viram aqui a demonstração das suas teses…Talvez as enormes proporções atingidas pela economia colocassem verdadeiros problemas e dificultassem essa planificação?RK – Sim, é certo que a expansão da economia tornou a planificação numa tarefa mais complexa. Todavia, a conclusão a que chegámos aponta em sentido contrário, ou seja, foi a erosão da planificação e o florescimento da «segunda economia» que colocaram entraves ao crescimento económico na URSS.Não foi portanto a subestimação do papel do mercado, mas antes as medidas tomadas para o seu alargamento que desviaram recursos da economia socialista?TK - Todas as sociedades socialistas têm mercados. A própria União Soviética sempre teve um mercado para o consumo privado. No entanto, as reformas económicas de Khruchov não só descentralizaram a planificação como introduziram alguns mecanismos de mercado na economia e formas de concorrência entre as empresas. As reformas de Kossiguin [primeiro-ministro da URSS entre 1964 e 1980] traduziram-se em cada vez maiores concessões ao modo de pensar capitalista. Dos cinco institutos mais importantes e influentes de economia política soviéticos, três estavam nas mãos de economistas pró-capitalistas do tipo de Aganbeguian, por exemplo. Os principais sectores da inteligensia, incluindo os economistas, exerciam importantes pressões sobre o governo. Este foi um processo que se desenvolveu ao longo de 20 anos, não aconteceu tudo de uma vez.Para alguns a perestróika tinha boas intenções mas falhou. No vosso livro, afirmam que esta foi a grande oportunidade para as forças anti-socialistas avançarem. Qual foi a responsabilidade e que intenções reais teve Gorbatchov em todo este processo?TK – Apesar das suas posições oportunistas, não pensamos que Gorbatchov tenha agido conscientemente logo de início para trair o socialismo e restaurar o capitalismo. Ao contrário de Andrópov, que era profundo e um marxista-leninista genuíno, Gorbatchov era um brilhante actor, mas uma pessoa superficial, sem grande preparação teórica. Quando se deslocou politicamente para a direita sob a influência de Iákovlev*, descobriu que o imperialismo o aprovava, que os elementos corrompidos do partido concordavam com ele, especialmente aqueles ligados à segunda economia que defendiam o sector privado, e aos poucos foi acelerando as reformas neste sentido. A dado momento Gorbatchov tomou a decisão consciente de que não era mais um comunista, mas um social-democrata, não acreditava mais na planificação, na propriedade social dos meios de produção, no papel da classe operária, na democracia socialista, queria que a União Soviética se transformasse numa Suécia ou algo parecido.O oportunismo, o abandono da luta foi um processo gradual que se tornou evidente em 1986. Alguns dirigentes do partido ofereceram determinada resistência, como foi o caso de Ligatchov*, mas mesmo este tinha fraquezas, embora fosse de longe melhor homem do que Gorbatchov. Ligachov foi apanhado de surpresa. Ele próprio afirmou que havia duas formas de corrupção, uma que há muito todos sabiam que existia, e à qual queriam pôr fim quando assumiram o poder em 1985; e uma outra que surgiu no espaço de um ano e meio como uma forte vaga de pressão, vinda da «segunda economia» e das organizações mafiosas florescentes.Como puderam esses sectores emergir com tal força na sociedade socialista?TK – A «segunda economia» alcançou uma expressão importante em dois períodos da história da URSS: o primeiro foi durante a Nova Política Económica (NEP) dos anos 20 que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, sob controlo estatal dentro de determinados limites. Esta foi uma opção consciente do Estado socialista tomada provisoriamente para fazer face à situação de emergência causada pela guerra civil. Em 1928-29 a NEP foi superada de forma decidida.No entanto, dirigentes do partido como Bukhárine defenderam a manutenção da NEP apresentando-a como a via mais adequada para alcançar o socialismo. Esta corrente foi derrotada pela maioria do partido liderada por Stáline, que justamente lembrou que a NEP fora definida por Lénine como um recuo necessário, porém temporário. E apostaram na planificação centralizada e na propriedade social dos meios de produção.Mas este período dos anos 20 ficou marcado não só pelo florescimento do capitalismo e dos sectores marginais e criminosos, mas também pelo alastramento de uma ideologia de direita, anti-socialista. Ou seja, podemos ver claramente uma correspondência entre a base material e a ideologia.O segundo período foi mais prolongado e gradual. Teve início em meados dos anos 50, após a morte de Stáline. Khruchov foi a primeira peça deste puzzle. Em muitos aspectos, não todos, teve desvios de direita e quando estes foram demasiados houve uma correcção. Veio Bréjnev, mas este detestava mudanças, queria estabilidade, e apesar das disputas entre as alas esquerda e direita os problemas continuaram a acumular-se. *Alekssandr Iákovlev - responsável a partir de 1985 pelo departamento de propaganda do PCUS, torna-se membro do CC do PCUS em 1986, responsável pelas questões da ideologia, informação e cultura. Sobe ao politburo em Junho de 1986 e é sob proposta sua que são nomeados os directores dos principais jornais e revistas do país que passam a defender abertamente posições antisocialistas (os jornais Moskovskie Novosti, Sovietskskaia Kultura, Izvestia; as revistas Ogoniok, Znamia, Novi Mir, entre outros. Faz publicar uma série de romances de escritores dissidentes e anti-soviéticos, bem como cerca de 30 filmes antes proibidos. Em Agosto de 1991 anuncia a decisão de abandonar o PCUS.*Egor Ligatchov – membro do politbureau entre 1985 e 1991, foi um dos impulsionadores da campanha anti-álcool (1985-87) e, mais tarde, assumiu-se como um opositor às reformas de Gorbatchov.

segunda-feira, setembro 29, 2008

Esquerdismo: Doença infantil do comunismo, hoje, em Portugal. IV

4 – O movimento é quase tudo "O Bloco" é versátil.

Como diz o provérbio, quando falta o cão, caça-se com um gato. Com efeito, como diz o líder Louçã (Focus, 18.04.06), o «Bloco é um movimento aberto, que se alarga.»(…) «Nós queremos é incluir.» A grande abertura na óptica do Bloco fez incluir na sua lista para vereador de Lisboa o inefável Sá Fernandes, irmão do outro. E como o «independente» não se sente dependente do BE, eis que surge a desavença intestina. Vem Luís Fazenda, para salvar a honra do convento, e diz que o vereador «se pôs a jeito» para o PS. Logo o irmão Ricardo, partidário do mano Zé, opina no Público contra o «Desnorteamento do Bloco de Esquerda em Lisboa». E Fazenda (DN, 4.08.08) tem de se justificar pela reprimenda, justificando a não complacência com o vereador em roda livre: afinal quem é que está dependente, é o Bloco de Sá Fernandes ou Sá Fernandes do Bloco? Coisas do Zé…Como o Bloco tem dificuldades nas autarquias, logo o coordenador do BE para esse pelouro, Pedro Soares, também na mesma linha de engorda eleitoral a qualquer preço, destina que «as candidaturas de cidadãos são um modelo desejável em vários locais, até pela participação cívica», etc. e tal (DN- 8.08.08). É só pôr o rótulo «BE» no produto «independente», para aumentar a estatística. É nessa mesma óptica de grande objectiva que os «dissidentes» são recebidos de braços abertos, depois de gastarem todos os cartuchos da dissidência no lugar de proveniência. Este pragmatismo é o timbre do partido do Bloco. Já Luís Fazenda, no trigésimo aniversário do «25 de Abril» (Passado e futuro, 2004), havia consumado dolorosamente o seu revisionismo à moda de Bernstein, («o movimento é tudo, o objectivo (estratégico) não é nada»), quando afirma: «Os marxistas de hoje redescobrem a táctica sem pressões estratégicas artificiais». Louçã, por sua vez, numa esclarecedora entrevista ao Público (21.07.05), quando lhe perguntam se o BE defende a revolução ou se assume como um movimento reformista responde assim: «É um debate de conceitos que o BE não teve.» E, noutro passo da mesma entrevista, diz que o BE não nasceu por uma fusão ideológica, mas «por uma definição de agenda e de programa». Será a agenda de antes da Ordem do Dia, em plenário, no Parlamento, ou em quaisquer «passos perdidos» no areópago, com os media? Como se viu, o programa é feito por medida, consoante a métrica da urna eleitoral.No século passado, no ido ano de 1989, bicentenário da Revolução Francesa, Louçã deu à estampa a sua Herança Tricolor( Ed. AJ). Fala aí das «raízes»: «a compreensão de que o lugar da esquerda, contra a banalidade, é na diferença; contra submissão, é na irreverência; contra a força das coisas, é na energia da esperança.» (p. 28). Em 2005 (Sábado, 28.01.05), numa interessante entrevista a Miguel Esteves Cardoso, o arguto escritor constata que Louçã só dissera coisas do ». E o líder, satisfeito, diz: «Fico muito contente por considerares as propostas do Bloco de Esquerda uma questão de senso comum.»É a agenda e o programa eleitoral da novíssima esquerda reformada e social-civilizada…Cada deputado no seu galho. As posições europeias do Bloco elevam a sua quota de civilidade e de boas maneiras europeístas. De que serve resistir quando os ventos de Oeste sopram tão fortes? Diz Miguel, parafraseando Marx, que «os resistentes só sabem criticar o mundo, quando o que é preciso é transformá-lo» (DN-20.06.05). Belo efeito, que prova a inteligência da navegação à vela, aproveitando os ventos de feição, sem grande preocupação com a rota. Diz Portas: «Estamos no século XXI, e não posso ser favorável a uma constituição sem processo constituinte.» Uma Europa à medida dos seus desejos, só a votos… Na crónica do DN-(29.10.05) MP encara mesmo «uma perspectiva de ruptura e refundação da Europa.» Ficou-lhe o optimismo histórico de antes, para os grandes voos até Bruxelas, ida e volta: «isto vai, com votos vai!»Enquanto se elevam as cotações «europeístas», sob controlo apertado do Banco Central Europeu, a lírica de Miguel Portas descobre «o abre-te sésamo» do paraíso europeu no «processo constituinte». E, por isso, é que, a seu ver, «a resistência em um marco nacional, sendo necessária, está condenada» (DN, idem). Diz Miguel Portas que a alternativa «é uma Europa ética e moral» (DN, 6.05.04). Já agora, cristã, há dois mil anos, apesar das invasões de tantos bárbaros.A facilidade com que se dá a volta a Portugal a pé contra o «desemprego», e a facilidade com que se volta à Europa a votar, eis a expressão acabada do idealismo e da inanidade do «movimento». Dizia Rosa Luxembourg, tão do agrado de alguns bloquistas nas questões «imperiais», a propósito do oportunismo que fazia a oração do «movimento é tudo, o objectivo não é nada»: «Retornar às teorias socialistas anteriores a Marx, não é apenas voltar ao b-a-ba, ao primeiro grande alfabeto do proletariado, é balbuciar o catecismo anacrónico da burguesia.» (Reforma e Revoluçãoa, p. 118, Ed, Estampa).As posições justas que o BE tem assumido contra as guerras imperialistas e pela paz, e outras, em defesa de minorias, não modificam o diagnóstico nem o prognóstico extraídos nesta radiografia sumária.

domingo, setembro 28, 2008

Esquerdismo: Doença infantil do comunismo, hoje, em Portugal. III


3- A maioridade parlamentar e o eleitoralismo

Desde a sua fundação em 1999, o BE artilhou sempre as suas baterias políticas para os actos eleitorais, sempre com a maior abertura possível. Os congressos, que tomam na sua terminologia original a designação de «convenções», antecedem quase sempre os actos eleitorais. No manifesto inaugural, «Começar de Novo» (1999), este propósito é claramente formulado: «O desafio que colocamos à sociedade portuguesa é o da emergência de uma nova iniciativa política. Formalmente, ela será um partido para se poder apresentar às eleições.»Na primeira «Convenção» (29/30.01.00), o lema é «Novos tempos/Nova esquerda», um slogan claramente propagandístico, que visa o terreno eleitoral. O seu cartão de identidade (Debates, n.º 3, p. 31), definido no ponto 5.1.2 sintetiza-se assim: «O Bloco de Esquerda quer ser um novo movimento e não mais um partido.»Esta «lógica de movimento» visa claramente atrair pela inovação, procurando um consumidor para o novíssimo «produto», nunca visto, up to date, coisa do século XXI, empacotado com belas palavras, no que de modo muito geral poderemos chamar o mercado eleitoral, neste mundo em que tudo se vende. Aliás a própria informalidade é um chamariz: «(…)a experiência deste ano indica que o Bloco se pode continuar a desenvolver como movimento desde que todos e todas nele actuem em base individual, com igualdade de direitos e deveres.» (idem, p.31). Aqui encontramos o modelo nítido da clientela, em que a pessoa é chamada como «indivíduo», guindada de modo fictício a uma posição nivelada pelos líderes, que, de tão democráticos, comungam com as bases, tanto como os «aderentes» se «apresentam» ao vivo às cúpulas. A supressão simulada da distinção entre dirigentes e dirigidos, promessa sui generis do movimento, tem como modelo a condição formalmente reconhecida de um voto a cada cidadão. Como o Bloco é fundamentalmente uma formação eleitoralista, em que o fim principal é aumentar sempre os votos, está decifrado o seu verdadeiro código em acto. Só que, por limitações de casting, tal como para os outros partidos, os eleitos são uns tantos, as mesmas caras, sendo a maioria dos eleitores anónimos, tanto em Lisboa como em Freixo de Espada à Cinta. O eleitoralismo é a imagem de marca do Bloco. A publicidade e a propaganda eleitoral os traços mais salientes no seu modus operandi. O estilo psicológico dos seus líderes pauta-se pela desenvoltura autoconvencida e o auto-elogio engraçado e pedante. É como se estivessem sempre a repetir até à saciedade, «nós é que somos os bons», «nós os inteligentes». O toque professoral e o tique de predicador inscrevem-se neste esquema. Veja-se o estilo do comentador do BE, Daniel de Oliveira, no Expresso, onde não perde pitada para zurzir no PCP, do alto do seu posto na imprensa burguesa.As grandes palavras, as frases bombásticas, têm por destinatário o eleitor, clamando para o voto. Na III Convenção do Bloco, pré-eleitoral como sempre, o lema sublime é a frase, «Da política da crise à política do socialismo». As «propostas» (ao eleitor!) são o «pleno emprego», a «modernização democrática» (por oposição à chamada «modernização conservadora (!), a «reforma fiscal» («referência fundadora» do Bloco) e a «globalização alternativa» (resposta verbal à «globalização neoliberal»). Vê-se muito bem que os dirigentes escolheram o menu para satisfazer gostos diversificados, para pescar votos em várias classes, gerações e outras condições como o género e minorias.Não admira que, com a embalagem obtida em algum sucesso eleitoral, o cartaz se tenha aprimorado, com slogans triunfalistas, vertidos em enunciados como «Tempo de viragem», «Novo ciclo de política», «Uma esquerda de confiança», «Dez prioridades para cem dias de mudança». Este último «programa», para as eleições parlamentares de 2005, calendariza-se, pasme-se, «para os primeiros cem dias do novo parlamento», como se fosse uma agenda de governo pré-formado. Independentemente da justeza de algumas propostas, como a alteração da lei do aborto, é óbvio que o cardápio do «contrato parlamentar» faz parte, no essencial, de um propósito eleitoralista, baseado em temas concretos para aliciar votos. A partir da V Convenção (2007), o Bloco parece querer dar um grande salto em frente. Assim, em vez de repisar que é o «socialismo de esquerda», passa a identificar-se como «a esquerda socialista». O grande filão eleitoral, depois das desilusões do Governo de Sócrates, estaria no eleitorado «socialista». Então, que melhor remédio para o direitismo do PS do que a alternativa «esquerda socialista»? Os bons propósitos bloquistas vão então combinar as reivindicações sociais de largo espectro com bombásticas «declarações de guerra» à «casta de administradores» e ao «sistema social de corrupção». Radicalismo verbal, para dar o tom… (Moção A da V Convenção, aprovada). Num documento publicado pela Mesa Nacional do BE (Março de 2006), intitulado «O rumo estratégico do Bloco», diz-se, sem rebuços: «A nossa resposta é, por isso, que o campo de crescimento do Bloco é muito grande, precisamente porque quer representar a maioria.»O Partido que se chama «bloco» atingiu a maioridade, quer ser maior, quer ser o maior. Basta-lhe a propaganda mimética «socialista», na caça ao voto.Daí a lenga-lenga: «O Bloco quer transformar-se num grande partido político» (Louçã, JN, 9.05.03), «O Bloco quer destruir o actual mapa político português» (DN - Louçã, 16.08.07), «Quero conquistar a maioria» (Louçã, Expresso, 07.06), «Representamos uma alternativa ao governo socialista» (Louçã, Público, 21.07.05). Como se define o BE, pergunta o jornalista (Público, idem): «Socialista, socialista no século XXI», diz FL. Num momento de grande lucidez, o porta-voz do BE (Focus, 2007), diz querer ir ao fundo dos (seus) objectivos, de «criar uma nova esquerda social e uma nova política para o país». E acrescenta: «E isso não se faz com palavras, faz-se com a resposta à grande exigência que é a criação de novas redes sociais.» Que são, diz: «Redes que faltam na imigração, nos mais explorados, nos call-centers, nos trabalhadores precários, jovens licenciados desprezados; temos que ter um movimento sindical que seja representativo e unitário.»A «rede» do Bloco, que pesca à rede, e que tem uma grande dor de cotovelo por não ter na sociedade civil e no movimento sindical e nas classes trabalhadoras a almejada equiparação ao PCP. Por isso alimenta as suas ideias de grandeza na promoção parlamentarista, no eleitoralismo e na conversa de jornal. (cont.)

sábado, setembro 27, 2008

Esquerdismo: Doença infantil do comunismo, hoje, em Portugal. II


2- Uma ideologia de discurso liberal

O estilo dominante do discurso bloquista é muito típico, alternando enunciados categóricos e incisivos, com frase vagas, mas sedutoras, até pela sua nebulosa imprecisão. Numa entrevista ao DN (2.03. 08) F. Louçã responde desassombradamente assim: «Com certeza que estamos à esquerda do Partido Comunista», nem mais. E, adiante, sobre o socialismo do Bloco: «Gosto muito de fazer campanha junto das pessoas, de procurar encontrar raízes de radicalidade e de transformação política. Acho que o socialismo é isso mesmo, e é isso que o BE é, como esquerda socialista.» Eis um exemplo paradigmático da forma sofisticada e sofista de nada dizer, usando palavras bonitas. Depois da frase vazia, mas sonora, eis que vem outra vez a afirmação política da originalidade do BE, pela voz de Louçã na mesma entrevista do DN, que assume forma de promoção da marca, do «produto»: «Nós rejeitamos a ideia de um movimento popular tutelado por um partido.» (…) «Nós entendemos que é preciso constituir uma esquerda transformadora e emancipatória.» Parafraseando, parece óbvio que como o Bloco é um «movimento», não é um «partido», o seu movimento popular não é tutelado, porque é o próprio BE em movimento. Fica muito mal ser «dono» de um movimento, a fotografia para a história sai muito melhor com a atitude liberal de deixar andar o movimento à solta, na espontaneidade criativa de indivíduos cuja consciência é guiada pelo GPS do Bloco… A ideologia baseia-se num discurso fluente e redundante onde vocábulos como «novo», «moderno», «modernizador», «aberto», «plural», «social», «socialista», «popular», «alternativo», «radical», «democrático», «mudança», vão alternando sem grande preocupação com o referente e a realidade. No livro de F. Louçã, Herança Tricolor (1989), obra prenunciadora do Bloco, radica a mesma preocupação de sempre contra o PCP, ardilosamente montada: «Pelo contrário, o único processo positivo teria que ser a erosão do PCP, criando espaços à esquerda, e esse é ainda e continuará a ser (…) uma questão central para a construção de um Partido Revolucionário(…)» E adverte: «Seria uma utopia reaccionária pensar que é positivo ou que será rápido o inevitável efeito de desgaste que a marginalidade intelectual e comunicacional do PCP e a sua crise política real, junto com as ofensivas ideológicas burguesas introduzirão no movimento operário (p. 184).» Discurso premonitório! Criado o Bloco de Esquerda, quão verdadeira é a sua promoção nos órgãos de informação, e como é verdadeira a tentativa de marginalização «comunicacional do PCP», em contraste com a diferença de importância e implantação nas classes trabalhadoras. O discurso vago e com laivos intelectuais encanta os menos atentos, que se deixam levar pelo palavreado promovido nos mass media.Detenhamos a nossa atenção voluntária neste discurso de Ana Drago e Jorge Costa, extraído do capítulo «Partir da Revolução a caminho do futuro», incluído no livro Passado e futuro do 25 de Abril: «Falar de “nova esquerda” é perceber que algo mudou, algo está a mudar, na ideia, no campo e nos actores da emancipação»(…). «No lugar onde se fabrica o antagonismo e o político, fazemos uma viagem de renovação de vontades, de reinvenção dos nomes e experimentação de novos caminhos.» (…) «Esses partidos modernos da era global, tanto mais necessários quando ainda não existem enquanto tal, concebem-se distintos mas próximos dos movimentos sociais e sabem que a soberania de transformação reside nestes, nas estruturas de contrapoder democrático de que se dotem»(…).O discurso versa sobre a identidade, sobre a autodescrição recitativa e exaustiva do que será, do que é o próprio movimento. Dir-se-ia que se está a inventar verbalmente uma nova formação, mas que não se sabe bem dizer o que é. Então a reiterada referência à «coisa», que foge na malha do texto, numa fraseologia em que abundam os verbos mas faltam os complementos directos, muito movimento para um resultado incerto e indefinido. Um discurso em eco, em espelho.Os mesmos autores dizem isto: «Sem um movimento popular de largo espectro, que imponha a partir de estruturas democráticas próprias mudanças profundas na natureza do poder político, a chegada da esquerda ao governo só atrasa o atraso.» (…) «Este partido traz consciência» (…) «Sabemos que a “revolução” tem que ser mais que um momento, é um processo de sentido democrático e de capacitação para a autonomia que se vive e se espraia no social, que se enraíza de quem fabrica o conflito e constrói a alternativa.» A «revolução» com aspas já está também contagiada pela mesma confusão indeterminada, que se vive e se espraia na vagueza do substantivo «social». Afinal o que é que se define e pretende? Que leitura da estrutura da sociedade, que base de classes sociais, que perspectivas em relação à propriedade privada dos grandes meios de produção e do capital financeiro? A sopa eclética, a mistura de palavras não tem um fio condutor, a ideologia é o próprio discurso, num solilóquio dialogado, que torna a linguagem um fim quase desprovido de racionalidade, à boa maneira pós-modernista, a liberdade individual da oração, o discurso liberal, afirmação da individualidade criativa do falante, cada um por si.E qual o mote da agenda política? Dizem Ana Drago e Jorge Costa, em uníssono: «Todos juntos pela luta toda.»Faça-se justiça, cabe a Louçã o primado da eloquência bloquista, com grande destaque para a oratória parlamentar e o tempo de antena televisivo. Mas o discurso escrito, particularmente em entrevista, perde o efeito da retórica. Numa entrevista do DN (13.01.07), à pergunta, «O BE não está demasiado dependente de Louçã?», responde assim: «Um partido do futuro como quer ser o BE nunca será um partido “coesionado” ideologicamente, será um partido que encontra diversidade, porque tem de exprimir a sociedade.» Foi assim em 2007. No DN também, em 16.06.06, o mesmo Louçã, à pergunta, «O Bloco não tem grande consistência ideológica?», responde: «Acho que é uma ficção. O Bloco é um partido que tem ideias mais estruturadas na esquerda portuguesa.» E remata logo de seguida que o «partido comunista não tem ideologia». A especialidade do BE é dizer sempre o melhor possível do BE, mesmo que tenha de se contradizer.O antagonismo contra o PCP, marca histórica dos antecedentes genéticos do BE, tem continuidade na acção bloquista, é um dos seus eixos tácticos e estratégicos. No Público (28.02.02), Louçã, «porta-voz» (designação que prefere à de líder) do BE, sublinha as diferenças entre o seu «movimento» e o PCP: «Há uma diferença essencial entre o Bloco e o PCP; o Bloco entende que a visão moderna da política é a que dá força e a capacidade de ouvir opiniões diferentes.» Estaríamos literalmente no mundo dos discursos: o porta-voz, transporta a «voz», vox populi, até à Rua do Ouvidor, e ouve o eco.Antes de passarmos à parte seguinte detenhamo-nos no conceito de «democracia» louçanista, vertido em Pensar a Democracia à esquerda (Editorial Inquérito, 1994), num texto que, por sinal, para dar o tom, se intitula Oito tons democráticos: «O princípio constitutivo da democracia deve ser a horizontalidade e não a verticalidade, a apresentação e não a representação, a política sendo a continuidade do exercício permanente da soberania». Por conseguinte, antes uma apresentação na horizontal de que uma representação na vertical… (cont.)

Esquerdismo: Doença infantil do comunismo, hoje, em Portugal I

No seguimento da serie de 10 artigos dedicados à obra de Lenine "Esquerdismo: Doença infantil do comunismo", começando hoje e durante os 4 próximos dias, recorrendo à inestimável ajuda do jornal "Avante", publicação única neste universo de mentiras e manipulação no qual se tornou o nosso País e elemento fundamental para o esclarecimento de massas, tentarei eliminar, de forma bastante directa e acessível, as dúvidas que pode suscitar um discurso infantil e demagogo, similar ao utilizado pelo Bloco de Esquerda, o pueril-radical braço trágico-comediante do PS.

Bloco de Esquerda - Um neo-reformismo de fachada socialista

Findava o século passado quando foi lançada a primeira pedra de um novo partido. Os seus fundadores, cientes da muita originalidade da iniciativa, baptizaram o «movimento», não propriamente como um partido na tradição portuguesa, com o nome de «Bloco de Esquerda». No Manifesto de 1999, o lema foi «Começar de Novo», começar um «novo movimento capaz de se constituir como alternativa na política nacional e de se apresentar aos portugueses nas eleições», desse último ano do milénio que expirava. Que coisa é o «Bloco»? Que marcas transporta da sua pré-história gerada pelos velhos, e agora extintos, pequenos partidos da extrema-esquerda, como o Partido Socialista Revolucionário (PSR), a União Democrática Popular (UDP), e de grupos como a Política XXI? Que boa nova trouxe para a «esquerda» em Portugal? Como tipificar o seu discurso? Como caracterizar a sua actuação política? Que esperar da sua marcha aparente em quarto crescente?
A zebra é o animal que leva por fora a sua radiografia interna(Ramón Gómez de la Serna) A presente análise toma partido, não poderia ser de outro modo. Não há teoria política fora do terreno áspero das lutas ideológicas. No bilhete de identidade do BE, definido pelos seus dirigentes (apesar da pretensa informalidade, o «movimento» é liderado por dirigentes, mesmo que por controlo remoto), é retratada a formação política com um natural favorecimento, como a encarnação da modernidade política, como a verdadeira «esquerda socialista»; e, de modo implícito, como a suma inteligência dos novos tempos. Para além destas verdades reveladas sondemos outras, veladas. 1- O código genético bloquista e o 25 de AbrilSeria pura mistificação fazer de conta que os fundadores do BE nasceram politicamente no mesmo ano do seu novo partido. A sua carreira política já ia longa quando fundaram o BE. No entanto, a datação histórica tem na própria fundação o marco miliar. Diz o carismático Francisco Louçã, falando do PCP, partido por si tido como rival, por definição: «O PCP é um partido que foi fundado no princípio do século passado e o BE foi fundado no último ano da viragem do século. Penso que isso diz tudo.» (Sábado, 22/12/05). Para os dirigentes do BE o tempo começa a contar no ano I da sua fundação… O tempo histórico, o passado de lutas, de resistência, e o papel determinante do PCP na Revolução de Abril e nas lutas que se seguiram, o papel do PCP como partido das classes trabalhadoras, tudo isso está ultrapassado… Eis o sintoma flagrante da falta de percepção histórica típica do «movimento» de pretensos neófitos, cujo cronómetro só regista a hora nos seus próprios pulsos.A ausência de uma filosofia da história transparece no estilo auto-elogioso, validado para o Bloco e para os líderes. Em resposta à pergunta do jornalista sobre onde está a «energia nova do BE», responde Louçã, com uma ironia egocêntrica típica: «Eu represento essa energia nova.» Eis a versão tonificada do papel do indivíduo na história… Recuemos a 1984, dez anos depois do 25 de Abril. O mais destacado dirigente do BE deu então à estampa o «Ensaio para uma revolução, 25 de Abril, 10 anos de lições» (Cadernos Marxistas). Diz «ensaio», porque, na sua visão, a «revolução» não foi além de uma «pré-revolução». A mais típica inconsistência leva-o, no entanto, a considerar que as lutas e experiências do PREC «colocaram o proletariado português na vanguarda da revolução europeia» (p. 46). Vendo a classe operária à luz da sua própria menoridade e insignificância organizativa, considera que «o movimento operário independente ainda começava a dar os primeiros passos» (p. 24), admitindo depois, no aceso das lutas, a possibilidade da «emergência de uma direcção revolucionária» (p. 46). Leia-se, de si próprios, in statu nascendi. O atraso irremediável em apanhar o comboio da história, compensa-se de modo verbalmente revolucionário, numa crítica de «esquerda» ao PCP. A Revolução Democrática e Nacional, etapa da revolução preconizada na estratégia delineada no VI Congresso do Partido Comunista, em 1965 (Rumo à Vitória, A. Cunhal), que antecipa em muitos traços a Revolução de Abril, é deturpada numa designada «revolução democrática nacional» (e uma rotulada «democracia-nacional», p. 22), da qual Louçã elimina o carácter antimonopolista, antilatifundiário, anticolonial e anti-imperialista.E diz ainda FL, na sua lição que se aplica a si próprio agora: «O que em contrapartida os revolucionários devem denunciar num balanço rigoroso é justamente a adaptação do PCP ao poder constituído, que procurava preservar as relações de produção (...).» (p. 30). Mudam-se os tempos e as verdades. O verbo incandescente e intolerante é agora a voz melíflua que anuncia a boa nova, que poderíamos assim parodiar: «Vinde, vinde! Qual a senha? Simples, basta dizer, esquerda moderna volver, adere ao bloco para crescer.»Sendo FL economista, sobressai a sua pouca capacidade na perspectiva da economia política. Contrapõe as suas teses às do PCP, que teima em imitar ao contrário. Veja-se esta conclusão lapidar, no período em que as nacionalizações estão em causa, em meados da década de 80: «Uma desnacionalização global da economia é inviável e mais, inútil.» E depois: «O que em todo o caso a burguesia não será é a reconstituição dos grandes grupos como existiam antes do 25 de Abril.» (Ensaio para uma Revolução, p. 57). É flagrante o erro de previsão. Agora, o BE contenta-se, no que poderão chamar-se «relações de produção», com uma vaga alusão à não privatização da «água» e da «energia», como bens «públicos»… Acrescentemos poeticamente, e o mar, e o sol, e o céu?... Em que condições viu a luz do dia o BE? Diz FL (J. Notícias, 29.01.05): «Nascemos de uma crise profunda no sistema político.» E adiante: «Todas as causas com as quais nos comprometemos fazem parte do nosso código genético e não abandonámos nenhuma.» Das duas uma, levando a metáfora do código à letra: ou o BE combina, por adição, os fragmentos de DNA da UDP, do PSR e de tutti quanti e é uma coisa híbrida, um «mosaico», ou a recombinação da informação genética adulterou de tal maneira o código, que a «coisa» é irreconhecível, uma verdadeira metamorfose num «bloco» bem cimentado. De qualquer modo, independentemente do código, o «fenótipo», a aparência do «movimento», permite leituras interessantes. Nos tempos idos, as principais forças constitutivas do Bloco aparentavam ser, sob forma de partidos, os verdadeiros «revolucionários proletários» (LCI/PSR), os verdadeiros «comunistas» (PCR/UDP), ou eram membros do Partido Comunista Português (Política XXI/Renovadores); agora, pretendem ser os verdadeiros e novos «socialistas», parlamentares, eleitorais, evolucionistas, numa palavra: reformistas. A mutação produziu uma viragem de 180 graus! Em 2004, os dirigentes do Bloco editaram um novo Ensaio Geral, Passado e futuro do 25 de Abril (Ed. D. Quixote). Ajustar contas com a revolução, ou melhor o «ensaio» de revolução, porque ainda não tinham crescido para uma revolução de verdade. O historiador e líder do Bloco, Fernando Rosas, conclui enfaticamente que «a democracia política não só não se alcançou contra a revolução, como está geneticamente presa a ela» (p. 32), que «a revolução portuguesa de 1974/5 constitui a marca genética específica da democracia portuguesa». Uma pomposa verdade de La Palisse… Fernando Rosas dá, no seu ensaio, uma versão curiosa do «25 de Abril», na qual as forças populares e revolucionárias são subalternizadas, nomeadamente o PCP: «A revolução é fruto, antes de mais, da incapacidade histórica das classes dominantes (…)». E ao longo da sua prosa, no lugar do movimento de massas, da luta organizada das classes trabalhadoras, da luta de classes nas várias etapas da Revolução, vai tecer-se uma narrativa em que o historiador utiliza metáforas como «explosão», «vaga», «ondas de propagação», «panela de pressão», «desordem telúrica», «tensão», «vaga de choque», expressões para justificar de modo naturalista, sem teoria política, o processo histórico. A descrição põe a tónica no irracional, no espontâneo, como resultado do recalcamento do papel de vanguarda do PCP no processo revolucionário. Diga-se que já em «25 de Abril» o código genético político de FR era ferozmente anti-PCP. Daí não ser de estranhar que, mais adiante, F. Rosas pisque o olho à direita quando denuncia «que o alvo (do PCP na Revolução) é cumprir os objectivos da “Revolução Democrática Nacional” e avançar para um poder do tipo das democracias populares.» (p. 40). De novo a designação deturpada, grave imprecisão para um historiador, «democrática nacional», em vez de «democrática e nacional». Com uma no cravo e outra na ferradura, à boa maneira oportunista, diz numa boutade radical: «A revolução representou historicamente o mais profundo e ameaçador abalo sofrido por uma oligarquia que desde sempre, em Portugal, reinava incólume e segura.» E num golpe final de obscuro maquiavelismo, de quem faz sentenças acusatórias sobre a Revolução e contra o PCP, diz: «O que fez do 25 de Abril uma operação militar com o PCP, mas não do PCP.»Luís Fazenda, outro líder do Bloco, também tenta pôr a sua cabeça em ordem na altura em que o «25 de Abril» fez trinta anos. No capítulo do livro acima referido, que intitula As voltas do PREC, este antigo dirigente da UDP parece mais apostado em manter alguns vínculos com o seu passado revolucionário. E diz, como quem tira uma conclusão definitiva: «E o 25 de Abril foi mesmo uma revolução democrática. Tal como se produziu não foi imaginada por ninguém» (…) «A revolução esteve materialmente perto do socialismo.» L. Fazenda está perplexo, apercebe-se pela leitura que faz de várias obras de Álvaro Cunhal, que este «compreende melhor do que ninguém as condições do derrube do fascismo nas circunstância concretas». Mas logo a seguir, arrependido desta imperdoável concessão, vai afirmar que «é escusado mascarar o 25 de Abril concreto com a estratégia da Revolução Democrática e Nacional» e que «Cunhal falhou na percepção da passagem da Revolução Democrática ao socialismo». A falibilidade da infalibilidade do PCP!...Por sua vez, os grupos esquerdistas são apostrofados por Fazenda, em jeito de autocrítica, como radicais sectários e de uma ingénua mediocridade. Na sua versão pretérita, como «radicalistas de fachada socialista» (A. Cunhal, 1970), ou na sua versão póstuma, no «começar de novo» do Bloco de Esquerda, o que sobressai nestas correntes é um idealismo, uma compreensão insuficiente da história nos seus avanços e recuos, na sua sinuosidade. No passado viram-se como os arautos da revolução iminente, iluminados pela «ideia» a realizar independentemente das condições sociais e históricas objectivas. Agora, são uma espécie de «sociedade» por antecipação, uma nova «ideia» original para um «socialismo» sem fronteiras, «desclassificado», utópico, numa promoção reformista, quase evangélica, de uma nova verdade.É a crise de alcance histórico, crise do capitalismo, crise do modo de vida de camadas das classes médias, crise profundamente contraditória, porque a par da grave derrota sofrida pelo socialismo a nível mundial, após a restauração do capitalismo na Europa de Leste e na ex-URSS. (cont.)

sexta-feira, setembro 26, 2008

Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo X




X - Algumas Conclusões

A revolução burguesa de 1905 na Rússia evidenciou uma reviravolta extraordinariamente original da história universal: num dos países capitalistas mais atrasados, o movimento grevista alcançou, pela primeira vez no mundo, força e amplitude inusitadas. Só em janeiro de 1905, o número de grevistas foi dez vezes maior que a média anual de grevistas durante os dez anos anteriores (1895/1904); de janeiro a outubro de 1905, as greves aumentaram incessantemente e em proporções gigantescas. Sob a influência de uma série de fatores históricos completamente originais, a Rússia atrasada deu ao mundo o primeiro exemplo não só de um salto brusco, em época de revolução, da atividade espontânea das massas oprimidas (coisa que ocorreu em todas as grandes revoluções), como também de uma projeção do proletariado que superava infinitamente o que se podia esperar por sua pequena percentagem entre a população; mostrou pela primeira vez a combinação da greve econômica com a greve política, com a transformação desta última em insurreição armada, o nascimento de uma nova forma de luta de massas e de organização de massas das classes oprimidas pelo capitalismo: os Soviets.
As revoluções de fevereiro e outubro de 1917 levaram ao desenvolvimento multilateral dos Soviets em todo o pais e, depois, à sua vitória na revolução proletária, socialista. Menos de dois anos mais tarde manifestou-se o caráter internacional dos Soviets, a extensão dessa forma de luta e de organização ao movimento operário mundial, o destino histórico dos Soviets de serem os coveiros, os herdeiros e os sucessores do parlamentarismo burguês, da democracia burguesa em geral.
Mais ainda. A história do movimento operário mostra atualmente que ele está destinado a atravessar em todos os países (e já começou a atravessar) um período de luta do comunismo nascente, cada dia mais forte, que marcha para a vitória, sobretudo e principalmente contra o "menchevismo>> próprio (de cada país), isto é, contra o oportunismo e o social-chovinismo e, de outro lado, como complemento, por assim dizer, contra o comunismo "de esquerda". A primeira dessas lutas desenvolveu-se em todos os países, ao que parece sem exceções, sob a forma de luta entre a II Internacional (hoje praticamente morta) e a III. A segunda luta manifesta-se na Alemanha, na Inglaterra, na Itália, nos Estados Unidos (onde pelo menos uma parte dos "Operários Industriais do Mundo" e das tendências anarco-sindicalistas apoiam os erros do comunismo de esquerda, ao mesmo tempo em que reconhecem de maneira quase geral, quase incondicional, o sistema soviético) e na França (atitude de uma parte dos ex-sindicalistas em relação ao partido. político e ao parlamentarismo, também paralelamente ao reconhecimento do sistema dos Soviets), isto é, manifesta-se não só em escala internacional, como universal.
Contudo, embora a escola preparatória que leva o movimento operário à vitória sobre a burguesia seja em toda parte idêntica em sua essência, seu desenvolvimento efetua-se em cada país de modo original. Os grandes países capitalistas adiantados avançam por esse caminho muito mais rapidamente que o bolchevismo, ao qual a história concedeu um prazo de quinze anos para preparar-se como tendência política organizada a fim de conquistar a vitória. No curto prazo de um ano, a III Internacional já alcançou um triunfo decisivo ao desfazer a II Internacional, a Internacional amarela, social-chovinista, que há poucos meses era incomparavelmente mais forte que a III, parecia sólida e poderosa, e dispunha do apoio da burguesia mundial sob todas as formas, diretas e indiretas, materiais (postos ministeriais, passaporte, imprensa) e morais.
O que importa agora é que os comunistas de cada país levem em conta com plena consciência tanto as tarefas fundamentais, de principio, da luta contra o oportunismo e o doutrinarismo "de esquerda", como as particularidades concretas que esta luta adquire e deve adquirir inevitavelmente em cada país, de acordo com os aspectos originais de sua economia, sua política, sua cultura, sua composição nacional (Irlanda, etc.), suas colônias, diversidade de religiões, etc., etc. Sente-se expandir e crescer em toda parte o descontentamento contra a II Internacional por causa de seu oportunismo e sua inépcia, sua incapacidade para criar um órgão realmente centralizado e dirigente, apto para orientar a tática internacional do proletariado revolucionário em sua luta pela república soviética universal. É preciso compreender perfeitamente que esse centro dirigente não pode, de modo algum, ser formado segundo normas táticas estereotipadas de luta, mecanicamente igualadas, idênticas. Enquanto subsistirem diferenças nacionais e estatais entre os povos e os países e essas diferenças subsistirão inclusive durante muito tempo depois da instauração universal da ditadura do proletariado - a unidade da tática internacional do movimento operário comunista de todos os países exigirá, não a supressão da variedade, não a supressão das particularidades nacionais (o que é, atualmente, um sonho absurdo), mas sim uma tal aplicação dos princípios fundamentais do comunismo (Poder Soviético e ditadura do proletariado) que modifique acertadamente esses princípios em seus detalhes, que os adapte, que os aplique acertadamente às particularidades nacionais e nacional-estatais. Investigar, estudar, descobrir, adivinhar, captar o que há de particular e específico, do ponto de vista nacional, na maneira pela qual cada país aborda concretamente a solução do problema internacional comum, do problema do triunfo sobre o oportunismo e o doutrinarismo de esquerda no movimento operário, a derrubada da burguesia, a instauração da república soviética e da ditadura proletária, é a principal tarefa do período histórico que atualmente atravessam todos os países adiantados (e não só os adiantados). Já se fez o principal - claro que não se fez tudo, absolutamente, mas já se fez o principal - para ganhar a vanguarda da classe operária para colocá-la ao lado do Poder Soviético contra o parlamentarismo, ao lado da ditadura do proletariado contra a democracia burguesa. Agora é preciso concentrar todas as forças e toda a atenção no passo seguinte, que parece ser - e, de certo modo, é realmente - menos fundamental, mas que, em compensação, está mais perto da solução efetiva do problema, isto é: procurar as formas de passar à revolução proletária ou de abordá-la.
A vanguarda proletária está ideologicamente conquistada. Isto é o principal. Sem isto não é possível dar sequer o primeiro passo para a vitória. Mas daí para o triunfo ainda falta uma grande distância a percorrer. Apenas com a vanguarda é impossível triunfar. Lançar a vanguarda sozinha à batalha decisiva, quando toda a classe, quando as grandes massas ainda não adotaram uma posição de apoio direto a essa vanguarda ou, pelo menos, de neutralidade simpática, e não são totalmente incapazes de apoiar o adversário, seria não só uma estupidez, como um crime. E para que realmente toda a classe, para que realmente as grandes massas dos trabalhadores e dos oprimidos pelo capital cheguem a ocupar essa posição, a propaganda e a agitação, por si, são insuficientes. Para isso necessita-se da própria experiência política das massas. Tal é a lei fundamental de todas as grandes revoluções, confirmada hoje com força e realce surpreendentes tanto pela, Rússia como pela Alemanha. Não só as massas incultas, em muitos casos analfabetas, da Rússia, como também as massas da Alemanha, muito cultas, sem nenhum analfabeto, precisaram experimentar em sua própria carne toda a impotência, toda a veleidade, toda a fraqueza, todo o servilismo ante a burguesia, toda a infâmia do governo dos cavalheiros da II Internacional, toda a inelutabilidade da ditadura dos ultra-reacionários (Kornilov na Rússia, Kapp & Cia. na Alemanha), única alternativa diante da ditadura do proletariado, para orientar-se decididamente rumo ao comunismo.
A tarefa imediata da vanguarda consciente do movimento operário internacional, isto é, dos partidos, grupos e tendências comunistas, consiste em saber atrair as amplas massas (hoje, em sua maior parte, ainda adormecidas, apáticas, rotineiras, inertes) para essa sua nova posição, ou, melhor dizendo, em saber dirigir não só seu próprio partido, como também essas massas no período de sua aproximação, de seu deslocamento para essa nova posição. Se a primeira tarefa histórica (ganhar para o Poder Soviético e para a ditadura da classe operária a vanguarda consciente do proletariado) não podia ser cumprida sem uma vitória ideológica e política completa sobre o oportunismo e o social-chovinismo, a segunda tarefa, que é agora imediata e que consiste em saber atrair as massas para essa nova posição capaz de assegurar o triunfo da vanguarda na revolução, não pode ser cumprida sem liquidar o doutrinarismo de esquerda, sem corrigir completamente seus erros, sem desembaraçar-se deles.
Enquanto se trata (e na medida em que se trata ainda hoje) de ganhar para o comunismo a vanguarda do proletariado, a propaganda deve) ocupar o primeiro lugar; inclusive os círculos, com todas ás suas debilidades, são úteis neste caso e dão resultados fecundos. Mas quando se trata da ação prática das massas, de movimentar - se me é permitido usar essa expressão - exércitos de milhões de homens, dispor todas as forças da classe de uma determinada sociedade para a luta final e decisiva., não conseguireis nada através, unicamente dos hábitos de propagandista, com a simples repetição das verdades do comunismo "puro". E é porque nesse caso a conta não é feita aos milhares, como faz o propagandista membro de um grupo reduzido e que ainda não dirige massas, e sim aos milhões e dezenas de milhões. Nesse caso é preciso perguntar a si próprio não só se convencemos a vanguarda da classe revolucionária, como também se estão em movimento as forças historicamente ativas de todas as classes da tal sociedade, obrigatoriamente de todas, sem exceção, de modo que a batalha decisiva esteja completamente amadurecida, de maneira que 1) todas as forças de classe que nos são adversas estejam suficientemente perdidas na confusão, suficientemente lutando entre si, suficientemente debilitadas por uma luta superior a suas forças; 2) que todos os elementos vacilantes, instáveis, inconsistentes, intermediários, isto é, a pequena burguesia, a democracia pequeno-burguesa, que se diferencia da burguesia, estejam suficientemente desmascarados diante do povo, suficientemente cobertos de opróbrio por sua falência prática; 3) que nas massas proletárias comece a aparecer e a expandir-se com poderoso impulso o afã de apoiar as ações revolucionárias mais resolutas, mais valentes e abnegadas contra a burguesia. É então que está madura a revolução, que nossa vitória está assegurada, caso tenhamos sabido levar em conta todas as condições levemente esboçadas acima e tenhamos escolhido acertadamente o momento.
As divergências entre os Churchill e os Lloyd George de um lado - tipos políticos que existem em todos os países com peculiaridades nacionais ínfimas - e, de outro, entre os Henderson e os Lloyd George, não têm absolutamente nenhuma importância e são insignificantes do ponto de vista do comunismo puro, isto é, abstrato, ainda incapaz de ações políticas práticas, de massas. Mas, do ponto de vista dessa ação prática das massas, tais divergências têm extraordinária importância. Saber levá-las em conta, saber determinar o momento em que amadureceram plenamente os conflitos inevitáveis entre esses "amigos", conflitos que debilitam e extenuam todos os "amigos" tomados em conjunto, é o trabalho, a missão do comunista que deseje ser não só um propagandista consciente, convicto e teoricamente preparado, como também um dirigente prático das massas na revolução. É necessário unir a mais absoluta fidelidade às idéias comunistas à arte de admitir todos os compromissos práticos necessários, manobras, acordos, ziguezagues, retiradas, etc., para precipitar a ascensão ao Poder político dos Henderson (dos heróis da II Internacional, para não citar nomes desses representantes da democracia pequeno-burguesa que se chamam de socialistas) e seu malogro no mesmo; para acelerar seu fracasso inevitável na prática, o que educará as massas precisamente em nosso espírito e as orientará precisamente para o comunismo; para acelerar as rusgas, as disputas, os conflitos e a separação total, inevitáveis entre os Henderson, os Lloyd George e os Churchill (entre os mencheviques e os social-revolucionários, os democratas constitucionalistas e os monárquicos; entre os Scheidemann, a burguesia, os partidários de Kapp, etc.) e para escolher acertadamente o momento de máxima dissensão entre todos esses "baluartes da sacrossanta propriedade privada", a fim de esmagá-los por completo, mediante uma resoluta ofensiva do proletariado, e conquistar o Poder político.
A história em geral, e a das revoluções em particular, é sempre mais rica de conteúdo, mais variada de formas e aspectos, mais viva e mais "astuta" do que imaginam os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das classes mais avançadas. E isso é compreensível, pois as melhores vanguardas exprimem a consciência, a vontade, a paixão e a imaginação de dezenas de milhares de homens acicatados pela mais aguda luta de momentos de exaltação e tensão especiais de todas as faculdades humanas, pela consciência, a vontade, a paixão e a imaginação de dezenas de milhões de homens, enquanto que a revolução é feita, em classes. Dai se depreendem duas conclusões práticas muito importantes: 1) a classe revolucionária, para realizar sua missão, deve saber utilizar todas as formas ou aspectos, sem a menor exceção, da atividade social (terminando depois da conquista do Poder político, às vezes com grande risco e imenso perigo, o que não terminou antes dessa conquista); 2) a classe revolucionária deve estar preparada para substituir uma forma por outra do modo mais rápido e inesperado.
Temos de concordar que seria insensata e até mesmo criminosa a conduta de um exército que não se dispusesse a conhecer e utilizar todos os tipos de armas, todos os meios e processos de luta que o inimigo possui ou pode possuir. Mas essa verdade é ainda mais aplicável à política que à arte militar. Em política é ainda menos fácil saber de antemão que método de luta será aplicável e vantajoso para nós, nessas ou naquelas circunstâncias futuras. Sem dominar todos os meios de luta podemos correr o risco de sofrer uma derrota fragorosa - às vezes decisiva - se modificações, independentes da nossa vontade na situação das outras classes puserem na ordem do dia uma forma de ação na qual somos particularmente débeis. Se dominamos todos os meios de luta, nossa vitória estará garantida, pois representamos os interesses da classe realmente avançada., realmente revolucionária, inclusive se as circunstâncias nos impedirem de utilizar a arma mais perigosa para o inimigo, a arma mais capaz de assestar-lhe golpes mortais com a maior rapidez. Os revolucionários inexperientes imaginam freqüentemente que os meios legais de luta são oportunistas, uma vez que a burguesia enganava e lograva os operários com particular freqüência nesse terreno (sobretudo nos períodos chamados "pacíficos", nos períodos não revolucionários), e que os processos ilegais são revolucionários. Mas isso não é justo. O justo é que os oportunistas e traidores da classe operária são os partidos e chefes que não sabem ou não querem (não digam: não posso, mas sim: não quero) aplicar os processos ilegais de luta numa situação, por exemplo, como a guerra imperialista de 1914,/1918, em que a burguesia dos países democráticos mais livres enganava os operários com insolência e crueldade nunca vistas, proibindo que se dissesse a verdade sobre o caráter de rapina da guerra. Mas os revolucionários que não sabem combinar as formas ilegais de luta com todas as formas legais são péssimos revolucionários. Não é difícil ser revolucionário quando a revolução já estourou e está em seu apogeu, quando todos aderem à revolução simplesmente por entusiasmo, modismo e inclusive, às vezes, por interesse pessoal de fazer carreira. Custa muito ao proletariado, causa-lhe duras penas, origina-lhe verdadeiros tormentos "desfazer-se" depois do triunfo desses "revolucionários". É muitíssimo mais difícil - e muitíssimo mais meritório - saber ser revolucionário quando ainda não existem as condições para a luta direta, aberta, autenticamente de massas, autenticamente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (através da propaganda, da agitação e da organização) em instituições não revolucionárias e, muitas vezes, simplesmente reacionárias, numa situação não revolucionária, entre massas incapazes de compreender imediatamente a necessidade de um método revolucionário de ação, Saber perceber, encontrar, determinar com exatidão o rumo concreto ou a modificação particular dos acontecimentos suscetíveis de levar as massas à grande luta revolucionária, verdadeira, final e decisiva é a principal missão do comunismo contemporâneo na Europa Ocidental e na América.
Um exemplo: Inglaterra. Não podemos saber e ninguém pode determinar de antemão - quando eclodirá ali a verdadeira revolução proletária e qual será o motivo principal que despertará, inflamará e lançará à luta as grandes massas, hoje ainda adormecidas. Temos o dever, por conseguinte, de realizar todo nosso trabalho preparatório tendo as quatro patas aferradas ao solo (segundo a expressão predileta do falecido Plekhanov quando era marxista e revolucionário). Talvez seja uma crise parlamentar que "abra o caminho", que "rompa o gelo", talvez uma crise que derive das contradições coloniais e imperialistas irremediavelmente complicadas, cada vez mais graves e exacerbadas, ou talvez outras causas. Não falamos da espécie de luta que decidirá a sorte da revolução proletária na Inglaterra (essa questão não permite nenhuma dúvida para nenhum comunista, pois para todos nós está firmemente decidida), mais sim do motivo que despertará as massas proletárias hoje ainda adormecidas, que as colocará em movimento e as levará à revolução. Não esqueçamos, por exemplo, que na república burguesa da França, numa situação que era cem vezes menos revolucionária que a atual, tanto internacional como internamente, bastou uma circunstância tão "inesperada" e "fútil" como o caso Dreyfus - uma das mil façanhas desonestas do bando militarista reacionário para levar o povo às bordas da guerra civil.
Na Inglaterra, os comunistas devem utilizar constantemente, sem descanso nem vacilação, as eleições parlamentares, todas as peripécias da política irlandesa, colonial e imperialista do governo britânico no mundo inteiro e todos os demais campos, esferas e aspectos da vida social, atuando neles com espírito, novo, com o espírito do comunismo, com o espírito da III e não da II Internacional. Não disponho de tempo nem espaço para descrever aqui os processos "russos", "bolcheviques", de participação nas eleições e na luta parlamentar; mas posso assegurar aos comunistas dos demais países que em nada se pareciam com as habituais campanhas parlamentares na Europa Ocidental. Desse fato tira-se freqüentemente a seguinte conclusão : "Isso é assim no vosso país, na Rússia, mas o nosso parlamentarismo é diferente". A conclusão é falsa. Os comunistas, os partidários da III Internacional existem em todos os países exatamente para transformar em toda linha, em todos os aspectos da vida, o antigo trabalho socialista, tradeunionista, sindicalista e parlamentar num trabalho novo, comunista. Em nossas eleições também vimos, à vontade, traços puramente burgueses, traços de oportunismo, praticismo vulgar, fraude capitalista. Os comunistas da Europa Ocidental e da América devem aprender a criar um parlamentarismo novo, incomum, não oportunista, sem arrivismo. É necessário que o Partido Comunista lance suas palavras de ordem; que os verdadeiros proletários, com a ajuda da gente pobre, inorganizada e completamente oprimida, repartam entre si e distribuam volantes, percorram as casas dos operários, as palhoças dos proletários do campo e dos camponeses que vivem nas aldeias longínquas (que, felizmente, existem em número muito menor na Europa que na Rússia, e são raras na Inglaterra), entrem nas tabernas freqüentadas pelas pessoas mais simples, introduzam-se nas associações, sociedades e reuniões fortuitas das pessoas pobres; que falem ao povo não de forma doutoral (e não muito à parlamentar), não corram, por nada neste mundo, atrás de um "lugarzinho" no parlamento, mas despertem em toda parte o pensamento, arrastem a massa, tomem a palavra da burguesia, utilizem o aparelho por ela criado, as eleições por ela convocadas, seus apelos a todo o povo e tornem conhecido deste último o bolchevismo, como nunca antes haviam tido oportunidade de fazê-lo (sob o domínio burguês) fora do período eleitoral (sem contar, naturalmente, os momentos de grandes greves, quando esse mesmo aparelho de agitação popular funcionava em nosso país com maior intensidade ainda). Fazer isso na Europa Ocidental e na América é muito difícil, dificílimo; mas pode e deve ser feito, pois é totalmente impossível cumprir as tarefas do comunismo sem trabalhar, e é preciso esforçar-se para resolver os problemas práticos, cada vez mais variados, cada vez mais ligados a todos os aspectos da vida social e que vão arrebatando cada vez mais à burguesia, um após outro, um setor, uma esfera de atividade.
Nessa mesma Inglaterra é necessário também organizar de modo novo (não de modo socialista, mas comunista; não de modo reformista, mas revolucionário) o trabalho de propaganda, de agitação e de organização no exército e entre as nações oprimidas e que não gozam de plenos direitos que formam "seu" Estado (Irlanda, as colônias). Pois todos esses setores da vida social, na época do imperialismo em geral e sobretudo agora, depois da guerra, que atormentou os povos e que lhes abriu rapidamente os olhos à verdade (a verdade de dezenas de milhões de homens terem morrido ou terem ficado mutilados exclusivamente para decidir se seriam os bandidos ingleses ou os bandidos alemães que saqueariam maior número de países), todos esses setores da vida social saturam-se particularmente de matérias inflamáveis e dão origem a multas causas de conflitos e de crises e à exacerbação da luta de classes. Não sabemos nem podemos saber qual das centelhas que surgem agora em grande número por toda parte em todos os países, sob a influência da crise econômica e política mundial, poderá causar o incêndio, isto é, despertar de modo especial as massas. Por isso, com nossos princípios novos, comunistas, devemos empreender a "preparação", de todos os campos, qualquer que seja a sua natureza, até dos mais velhos, vetustos e, aparentemente, mais estéreis, porque em caso contrário não estaremos à altura de nossa missão, faltar-nos-á alguma coisa, não dominaremos todos os tipos de armas, não nos prepararemos nem para vitória sobre a burguesia (que organizou a vida social em todos os seus aspectos à moda burguesa e que agora a desorganizou também à moda burguesa) nem para a reorganização comunista de toda a vida, tarefa que deveremos cumprir uma vez conquistada a vitória.
Depois da revolução proletária na Rússia e de suas vitórias em escala internacional, inesperadas para a burguesia e os filisteus, o mundo inteiro se transformou e a burguesia também é outra em toda parte. A burguesia sente-se assustada com o "bolchevismo" e está irritada contra ele a ponto de quase perder a cabeça; precisamente por isso, acelera, de um lado, o desenvolvimento dos acontecimentos e, de outro, concentra a atenção no esmagamento do bolchevismo pela força, debilitando com isso sua posição em muitos outros terrenos. Os comunistas de todos os países avançados devem levar em conta para a sua tática essas duas circunstâncias.
Os democratas constitucionalistas russos e Kerenski passaram dos limites quando empreenderam uma furiosa perseguição contra os bolcheviques, sobretudo desde abril de 1917 e, mais ainda, em junho e julho desse mesmo ano. Os milhões de exemplares dos jornais burgueses, que gritavam em todos os tons contra os bolcheviques, ajudaram a conseguir que as massas valorizassem o bolchevismo, e toda a vida social, mesmo sem o concurso da imprensa, impregnou-se de discussões sobre o bolchevismo, graças ao "zelo" da burguesia. Os milionários de todos os países conduzem-se atualmente de tal modo em escala internacional que lhes devemos ficar agradecidos de todo o coração. Perseguem o bolchevismo com o mesmo zelo com que o perseguiam anteriormente Kerenski e companhia e, como estes, também passam dos limites e nos ajudam tanto quanto Kerenski. Quando a burguesia francesa converte o bolchevismo no ponto central de sua campanha eleitoral, injuriando por seu bolchevismo socialistas relativamente moderados ou vacilantes; quando a burguesia norte-americana, perdendo completamente a cabeça, prende milhares e milhares de indivíduos suspeitos de bolcheviques e cria um ambiente de pânico propagando em toda parte a notícia de conjurações bolcheviques; quando a burguesia inglesa, a mais "Séria" do mundo, com todo seu talento e experiência comete inacreditáveis tolices, funda riquíssimas "sociedades para a luta contra o bolchevismo", cria uma literatura especial a seu respeito e toma a seu serviço, para a luta contra ele, um pessoal suplementar de sábios, agitadores e padres, devemos inclinar-nos e agradecer aos senhores capitalistas. Trabalham para nós, ajudam-nos a interessar as massas pela natureza e a significação do bolchevismo. E não podem fazer de outro modo, porque já fracassaram em suas tentativas de "fazer silêncio" em torno do bolchevismo e sufocá-lo.
Mas, ao mesmo tempo, a burguesia vê no bolchevismo quase que exclusivamente um dos seus aspectos: a insurreição, a violência, o terror; por isso procura preparar-se de modo particular para opor resistência e responder nesse terreno. É possível que em casos isolados, em alguns países, nesses ou naqueles períodos breves, o consiga; é preciso contar com essa possibilidade, que nada tem de temível para nós. O comunismo "brota" literalmente de todos os aspectos da vida social, seus gemes existem absolutamente em toda parte, o "contágio" (para empregar a comparação predileta da burguesia e da polícia burguesa e a mais "agradável" para elas) penetrou profundamente em todos os poros do organismo e o impregnou completamente. Caso se "feche", com particular cuidado uma das saídas, o "contágio" encontrará outra, às vezes a mais inesperada. A vida triunfa acima de todas as coisas. Que a burguesia se sobressalte, irrite-se até perder a cabeça; que ultrapasse os limites, faça tolices, vingue-se por antecipação dos bolcheviques e se esforce por aniquilar (na Índia, Hungria, Alemanha, etc.) centenas, milhares, centenas de milhares de bolcheviques de ontem ou de amanhã; ao fazer isso, procede como procederam todas as classes condenadas pela história a desaparecer. Os comunistas devem saber quê, seja como for, o futuro lhes pertence. E, por isso, podemos (e devemos) unir, na grande luta revolucionária, o máximo de paixão à análise mais fria e serena das furiosas convulsões da burguesia. A revolução russa foi cruelmente esmagada em 1905; os bolcheviques russos foram derrotados em julho de 1917; mais de 15.000 comunistas alemães foram aniquilados por meio da ardilosa provocação e das hábeis manobras de Scheidemann e Noske, aliados à burguesia e aos generais monárquicos; na Pínlândia e na Hungria o terror branco faz estragos. Em todos os casos e em todos os países, porém, o comunista está se temperando e cresce; suas raízes são tão profundas que as perseguições não o debilitam, não o extenuam, mas, pelo contrário, reforçam-no. Só falta uma coisa para que marchemos rumo à vitória com mais firmeza e segurança; que os comunistas de todos os países compreendamos em toda parte e até o fim que em nossa tática é necessária a máxima noxibilidade. O que falta atualmente ao comunismo, que cresce magnificamente, sobretudo nos países adiantados, é essa consciência e o acerto para aplicá-la na prática.
Poderia (e deveria) ser uma lição útil o que ocorreu com os chefes da II Internacional, tão eruditos e tão fiéis ao socialismo como Kautski, Otto Bauer e outros. Compreendiam perfeitamente a necessidade de uma tática flexível, haviam aprendido e ensinavam aos demais a dialética de Marx (e muito do que foi feito por eles nesse terreno será sempre considerado como uma valiosa aquisição da literatura socialista); mas ao aplicar essa dialética incorreram num erro de tal natureza ou se mostraram na prática tão afastados da dialética, tão incapazes de levar em conta as rápidas modificações de forma e o rápido aparecimento de um conteúdo novo nas formas antigas, que sua sorte não é mais invejável que a de Hyndman, Guesde e Plekhanov. A causa fundamental de seu fracasso consiste em que "fixaram sua atenção" numa determinada forma de crescimento do movimento operário e do socialismo, esquecendo o caráter unilateral dessa fixação; tiveram medo de ver a brusca ruptura, inevitável em virtude das circunstâncias objetivas, e continuaram repetindo as verdades simples memorizadas e à primeira vista indiscutíveis: três é maior do que dois. Mas a política se parece mais com a álgebra que com a aritmética e mais ainda com as matemáticas superiores que com as matemáticas elementares. Na realidade, todas as formas antigas do movimento socialista adquiriram um novo conteúdo, razão pela qual surgiu diante das cifras um sinal novo, o sinal "menos", enquanto nossos sábios continuavam (e continuam) tratando teimosamente de persuadir-se e de persuadir todo mundo de que "menos três" é maior que "menos dois".
É preciso fazer com que os comunistas não repitam, só que em sentido contrário, esse mesmo erro, ou melhor, que esse mesmo erro, cometido, só que em sentido contrário, pelos comunistas "de esquerda>, seja corrigido o mais cedo possível e curado rapidamente e com o menor sofrimento para o organismo. Não só o doutrinarismo de direita constitui um erro; o de esquerda também. Naturalmente, o erro do doutrinarismo de esquerda no comunismo é hoje em dia muito menos perigoso e grave que o de direita (isto é, do social-chovinismo e do kautskismo); mas isso é devido apenas a que o comunismo de esquerda é uma tendência novíssima, que acaba de nascer. Só por isso, a doença pode ser, em certas condições, curada facilmente e é necessário empreender seu tratamento com a máxima energia.
As formas antigas romperam-se, pois aconteceu de seu novo conteúdo - antiproletário, reacionário - adquirir um desenvolvimento desmedido. Do ponto de vista do desenvolvimento do comunismo internacional possuímos hoje um conteúdo tão sólido, tão forte e tão poderoso de nossa atividade (em prol do Poder dos Soviets, em prol da ditadura do proletariado) que pode e deve manifestar-se sob qualquer forma, tanto antiga como nova; que pode e deve transformar, vencer, submeter todas as formas, não só novas como também antigas, não para conciliar-se com estas, mas para saber convertê-las todas, as novas e as velhas, numa arma da vitória completa e definitiva, decisiva e irremissível do comunismo.
Os comunistas devem consagrar todos os seus esforços para orientar o movimento operária e o desenvolvimento social em geral no sentido do caminho mais reto e rápido para a vitória mundial do Poder Soviético e da ditadura do proletariado. Trata-se de uma verdade indiscutível. Mas basta dar um pequeno passo além - ainda que pareça um passo dado na mesma direção - para que essa verdade se transforme em erro. Basta dizer, como dizem os comunistas de esquerda alemães e ingleses, que não aceitamos senão um caminho, o caminho reto, que não admitimos manobras, acordos e compromissos, para que isso se torne um erro que pode causar, e em parte já causou e continua causando, os mais sérios prejuízos ao comunismo. O doutrinarismo de direita obstinou-se em não admitir senão as formas antigas e fracassou do modo mais completo por não ter percebido o novo conteúdo. O doutrinarismo de esquerda obstina-se em repelir incondicionalmente certas formas antigas, sem ver que o novo conteúdo abre seu caminho através de todas as espécies de formas e que nosso dever de comunistas consiste em dominá-las todas, em aprender a completar umas com as outras e a substituir umas por outras com a máxima rapidez, em adaptar a nossa tática a qualquer modificação dessa natureza, causada por uma classe que não seja a nossa ou por esforços que não sejam os nossos.
A revolução universal, que recebeu um impulso tão poderoso e foi acelerada com tanta intensidade pelos horrores, vilezas e abominações da guerra imperialista mundial e pela situação sem saída que esta originou, essa revolução estende-se e aprofunda-se com rapidez tão extraordinária, riqueza tão magnífica de formas sucessivas, com uma refutação prática tão edificante de todo doutrinarismo, que existem todos os motivos para acreditar que o movimento comunista internacional se curará rapidamente e por completo da doença infantil do comunismo "de esquerda". 27 de abril de 1920. Apêndice Enquanto as editoras de nosso país - que foi saqueado pelos imperialistas de todo o mundo em vingança pela vitória da revolução proletária e que continua sendo saqueado e bloqueado, apesar de todas as promessas feitas aos operários desses países imperialistas - organizavam a publicação do meu folheto, recebemos do estrangeiro dados complementares. Sem aspirar, absolutamente, a que meu folheto seja algo mais que breves notas de um publicista, abordarei ligeiramente alguns pontos.

Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo IX



IX -O Comunismo de Esquerda na Inglaterra

Na Inglaterra ainda não existe o Partido Comunista, mas entre os operários observa-se um movimento comunista jovem, amplo, poderoso, que cresce com rapidez e permite que se alimentem as mais radiosas esperanças. Há alguns partidos e organizações políticas, ("Partido Socialista Britânico"17 , "Partido Socialista Operário", "Sociedade Socialista do Sul de Gales", "Federação Socialista Operaría"18 que desejam fundar o Partido Comunista e que, para isso, já fazem negociações entre si. O Workers Dreadnought (t. VI, n.º. 48, de 21/11/1920), semanário da última das organizações citadas, dirigido pela camarada Sylvia Pankhurst, publicou um artigo escrito por ela, intitulado, Rumo ao Partido Comunista. Nele está exposta a marcha das negociações entre as quatro organizações citadas para constituir um Partido Comunista único, baseado na adesão à II Internacional o no reconhecimento, em vez do parlamentarismo, do sistema soviético e da ditadura do proletariado. Acontece que um dos principais obstáculos para a criação imediata de um Partido Comunista único é a falta de unanimidade no que concerne à participação no parlamento e à adesão do novo Partido Comunista ao velho "Partido Trabalhista" oportunista, social-chovinista e profissionalista, integrado predominantemente por trade-unions. A "Federação Socialista Operária" e o "Partido Socialista Operário"(1) pronunciam-se contra a participação nas eleições parlamentares e no parlamento, e contra a adesão ao "Partido Trabalhista", discordando quanto a isso de todos ou da maioria dos membros do Partido Socialista Britânico, que, é, na sua opinião, "a ala direita dos Partidos Comunistas" na Inglaterra (pág. 5, artigo citado de Sylvia Pankhurst).
A divisão fundamental é, portanto, a mesma que na Alemanha, malgrado as enormes diferenças de forma em que se manifestam as divergências (na Alemanha essa forma é muito mais parecida "com a russa" que na Inglaterra), além de muitas outras circunstâncias. Examinemos os argumentos dos "esquerdistas".
Ao falar da participação no parlamento, a camarada Sylvia Pankhurst alude a uma carta à Redação do camarada W. Gallacher, publicada no mesmo número, o qual, em nome do "Conselho Operário da Escócia", de Glasgow, escreve:
"Este Conselho é definidamente antiparlamentarista e está apoiado pela ala esquerda de várias organizações políticas. Representamos o movimento revolucionário na Escócia, que pretende criar uma organização revolucionária nas indústrias (nos diversos setores da produção) e um Partido Comunista, baseado em Comitês sociais, no país inteiro. Durante muito tempo altercamos com os parlamentares oficiais. Não achamos necessário declarar-lhes guerra abertamente e eles temem iniciar o ataque contra nós.
Semelhante estado de coisas, porém, não pode prolongar-se muito. Nós triunfamos em toda a linha.
Os membros de base do Partido Trabalhista Independente da Escócia tem uma repugnância cada vez maior pela idéia do parlamento, e quase todos os grupos locais são partidários dos Soviets (no texto inglês emprega-se o termo russo) ou Conselhos Operários. Sem dúvida, isso tem considerável importância para os senhores que consideram a política um meio de vida (como se fosse uma profissão) e põem em jogo todos os métodos para persuadir seus membros a voltarem para o parlamentarismo. Os camaradas revolucionários não devem (todos os grifos são do autor) apoiar esse bando. Nesse terreno, nossa luta será muito difícil. Um dos seus piores aspectos consistirá na traição daqueles cuja ambição pessoal é um motivo mais forte que seu interesse pela revolução. Qualquer apoio ao parlamentarismo eqüivale a contribuir para que o Poder caia nas mãos dos Scheidemann e Noske britânicos. Henderson. Clynes, & Cia são reacionários irrecuperáveis. O Partido Trabalhista Independente oficial cai, cada vez mais sob o controle dos liberais burgueses, que encontraram um refúgio espiritual no campo dos senhores MacDonald, Snowden e companhia. O Partido Trabalhista Independente oficial é violentamente hostil à III Internacional, mas a massa é partidária dela. Apoiar, seja como for, os parlamentaristas oportunistas significa simplesmente fazer o jogo desses senhores. O Partido Socialista Britânico nada significa... Precisa-se é de uma boa organização revolucionária industrial e de um Partido Comunista que atue em bases claras, bem definidas, científicas. Se nossos camaradas podem ajudar-nos a criar ambas as coisas, aceitaremos de bom gosto sua ajuda; se não podem, por Deus, não se metam nisso, se não querem trair a Revolução apoiando os reacionários, que tão cuidadosamente tratam de adquirir o "honroso" (?) (a interrogação é do autor) titulo de parlamentar e que ardem de desejos de demonstrar que são capazes de governar tão bem quanto os próprios "amos", os políticos de classe".
Esta carta à Redação exprime admiravelmente, na minha opinião, o estado de espirito e o ponto de vista dos comunistas jovens e dos operários comuns que apenas começam a chegar ao comunismo. Esse estado de espírito é altamente consolador e valioso: é preciso saber apreciá-lo e apoiá-lo, porque sem ele seria para desanimar da vitória da revolução proletária na Inglaterra (e em qualquer outro país). É preciso conservar cuidadosamente e ajudar com toda a solicitude os homens que sabem expressar esse estado de ânimo das massas e suscitá-lo (pois muito amiúde ele permanece oculto, inconsciente, adormecido). Mas, ao mesmo tempo, é mister dizer-lhes, clara e sinceramente que, por si só, esse espírito é insuficiente para dirigir as massas na grande luta revolucionária, e que esses ou outros erros em que podem incorrer ou incorrem os homens mais fiéis à causa revolucionária são capazes de prejudicá-la. A carta dirigida à Redação pelo camarada Gallacher mostra de modo inconteste, o germe de todos os erros que cometem os comunistas "de esquerda" alemães e em que incorreram os bolcheviques "de esquerda" russos em 1908 e 1918.
O autor da carta está imbuído do mais nobre ódio proletário aos "políticos de classe " da burguesia (ódio compreensível e suscetível de penetrar, por outro lado, não só nos proletários, como em todos os. trabalhadores, todos os "pequenos", para empregar a expressão alemã). Esse ódio de um representante das massas oprimidas e exploradas é, na verdade, o "princípio de toda a sabedoria", a base de todo movimento socialista e comunista e de seus êxitos. Mas o autor não leva em conta, pelo visto, que a política é uma ciência e uma arte que não caem do céu, que não se obtêm gratuitamente, e que se o proletariado quiser vencer a burguesia deve formar seus "políticos de classe", proletários, e de tal envergadura que não sejam inferiores aos políticos burgueses.
O autor compreendeu de modo admirável que não é o parlamento, e sim apenas os Soviets operários que podem constituir o instrumento necessário do proletariado para atingir seus objetivos. E, naturalmente, quem até agora não compreendeu isso, é o pior dos reacionários, mesmo que seja o homem mais culto, o político mais experiente, o socialista mais sincero, o marxista mais erudito, o mais honrado cidadão e chefe de família. Há, porém, uma questão que o autor não apresenta e nem sequer pensa que seja necessário apresentar; se se pode levar os Soviets à vitória sobre o parlamento sem fazer com que os políticos "soviéticos" entrem no parlamento, sem decompor o parlamentarismo estando dentro dele, sem preparar no interior do parlamento o êxito dos Soviets no cumprimento de sua tarefa de acabar com o parlamento. Contudo, o autor exprime uma idéia absolutamente justa ao dizer que o Partido Comunista Inglês deve atuar em bases científicas. A ciência exige, em primeiro lugar, que se leve em conta a experiência dos demais países, sobretudo se esses países, também capitalistas, passam ou passaram há pouco por uma experiência bastante parecida ; em segundo lugar, exige que se levem em conta todas as forças, todos os grupos, partidos, classes e massas que atuam dentro do pais considerado, em vez de determinar a política baseando-se exclusivamente nos desejos e opiniões, no grau de consciência e de preparação para a luta de um só grupo ou partido.
É certo que os Henderson, Clynes, MacDonald e Snowden são reacionários irrecuperáveis. E também é certo que querem tomar o Poder (ainda que prefiram a coalizão com a burguesia), que querem "governar", de acordo com as rançosas normas burguesas e que, uma vez de posse do Poder, procederão inevitavelmente como os Scheidemann e os Noske. Tudo isso é verdade; mas dai não se deduz, absolutamente, que apoiá-los equivale a trair a revolução, mas sim que, no interesse dela, os revolucionários da classe operária devem conceder a esses senhores certo apoio parlamentar. Para tornar clara essa idéia usarei dois documentos políticos ingleses atuais : 1) o discurso pronunciado pelo Primeiro Ministro Lloyd George a 18 de março de 1920 (segundo o texto do The Manchester Guardian de 19 do mesmo mês) e 2) os argumentos de uma comunista "de esquerda", camarada Sylvia Pankhurst, no artigo citado.
Em seu discurso, Lloyd George polemiza com Asquith (que fora convidado especialmente para a reunião, mas que se negou a assisti-la) e com aqueles liberais que querem uma aproximação com o Partido Trabalhista e não a coalizão com os conservadores. (Na carta dirigida à Redação pelo camarada Gallacher vimos também uma alusão à passagem de alguns liberais ao Partido Trabalhista Independente). Lloyd George demonstra que é necessária uma coalizão dos liberais com os conservadores, inclusive uma coalizão estreita, pois de outro modo a vitória pode ser alcançada pelo Partido Trabalhista,. que Lloyd George "prefere chamar" de socialista e que aspira "à propriedade coletiva" dos meios de produção. "Na França isso se chamava comunismo" - explica em linguagem popular o chefe da burguesia inglesa a seus ouvintes, membros do Partido Liberal parlamentar, que, com certeza, até então ignoravam isso - "na Alemanha chamava-se socialismo; na Rússia chama-se bolchevismo". Para os liberais isso é inadmissível por princípio, esclarece Lloyd George, pois os liberais são, por princípio, defensores da propriedade privada. "A civilização está em perigo", declara o orador, razão por que devem unir-se liberais e conservadores...
"... Se vocês forem aos distritos agrícolas - diz Lloyd George - verão conservadas, reconheço, as antigas divisões do partido. Lá, o perigo está longe, não existe. Mas quando o perigo lá chegar, será tão grande como o é hoje em alguns distritos industriais. Quatro quintos de nosso país dedicam-se à Indústria e ao comércio; apenas um quinto vive da agricultura. Eis uma das circunstâncias que sempre tenho em mente quando penso nos perigos com que o futuro nos ameaça. Na França, a população é agrícola e por isso constitui uma base sólida de determinadas opiniões, base que não se modifica tão rapidamente e que não é facilmente excitável pelo movimento revolucionário. Em nosso país a coisa é diferente. Nosso pais é menos estável que qualquer outro, e se se começar a vacilar, a catástrofe aqui será, em virtude dos motivos citados, mais forte que nos demais países".
Através dessas citações, o leitor pode perceber que o Sr. Lloyd George não só é muito inteligente, como também que aprendeu muito com os marxistas. Nós também não faríamos nenhum mal em aprender com Lloyd George.
É igualmente interessante registrar o seguinte episódio da discussão havida depois do discurso de Lloyd George:
"G. Wallace: Gostaria de perguntar como encara o primeiro ministro os resultados de sua política nos, distritos industriais no que concerne aos operários industriais, muitos dos quais são hoje liberais e nos concedem tão grande apoio. Não se pode prever um resultado que provoque um aumento enorme da força do Partido Trabalhista por parte desses mesmos operários que hoje nos apoiam tão sinceramente?
O Primeiro Ministro: Sou de opinião completamente diferente. O fato de os liberais lutarem entre si leva, sem dúvida, um número bastante considerável deles, movidos pelo desespero, para as fileiras do Partido Trabalhista, onde há muitos liberais bastante capazes que hoje se ocupam em desacreditar o governo. O resultado dessa luta entre os liberais, evidentemente, é um importante movimento da opinião pública em favor do Partido Trabalhista. A opinião pública inclina-se não para os liberais que estão fora do Partido Trabalhista, mas sim para este, como mostram as eleições parciais".
Digamos, de passagem, que esses raciocínios provam de modo singular até que ponto se confundiram e não podem deixar de cometer desatinos irreparáveis os mais inteligentes homens da burguesia. É isto que a fará perecer. Nossos camaradas podem até fazer tolices (contanto, é claro, que não sejam muito consideráveis e possam ser reparadas a tempo) e, não obstante, acabarão por triunfar. 0 segundo documento político são as seguintes considerações da comunista "de esquerda" camarada Sylvia Pankhurst:
"...O camarada Inkpin (secretário do Partido Socialista Britânico) denomina o Partido Trabalhista de "a principal organização do movimento da classe operária". Outro camarada do Partido Socialista Britânico expressou ainda com mais relevo o ponto de vista desse partido na Conferência da III Internacional.
"Consideramos o Partido Trabalhista - disse - como a classe operária organizada". Não compartilhamos dessa opinião a respeito do Partido Trabalhista. Ele é muito importante do ponto de vista numérico, embora seus membros sejam; em grande parte, inertes e apáticos; trata-se de operários e operárias que entraram para as trade-unions porque seus companheiros de oficina são trade-unionistas e porque desejam receber seguros e pensões.
Reconhecemos, porém, que a importância numérica do Partido Trabalhista obedece também ao fato de ser esse partido fruto de uma escola de pensamento, cujos limites ainda não foram ultrapassados pela maioria da classe operária britânica, embora se preparem grandes modificações na mentalidade do povo que transformarão brevemente esse estado de coisas... "
"... O Partido Trabalhista Britânico, como as organizações social-patriotas dos demais países, chegará inevitavelmente ao Poder pelo caminho natural do desenvolvimento social. O dever dos comunistas consiste em organizar as forças que derrubarão os social-patriotas, e em nosso país não devemos vacilar nem retardar essa ação. Não devemos dispersar nossas energias aumentando as forças do Partido Trabalhista; seu advento ao Poder é inevitável. Devemos concentrar nossas forças na criação de um movimento comunista que derrote esse partido. Dentro de pouco tempo o Partido Trabalhista estará no governo; a oposição revolucionária deve estar preparada para empreender o ataque contra ele..."
Assim, pois, a burguesia liberal renuncia ao sistema dos "dois partidos" (dos exploradores), consagrado no transcurso da história por uma experiência secular e extremamente proveitoso para os exploradores, considerando necessária a união de suas forças a fim de lutar contra o Partido Trabalhista. Uma parte dos liberais, como os ratos de um navio que afunda, corre para o Partido Trabalhista. Os comunistas de esquerda consideram inevitável a passagem do Poder para as mãos do Partido Trabalhista e reconhecem que a maior parte dos operários está atualmente a favor desse partido. De tudo isso, chegam à estranha conclusão assim formulada pela camarada Sylvia Pankhurst :
"O Partido Comunista não deve assumir compromissos... Deve conservar pura a sua doutrina e imaculada a sua independência frente ao reformismo; sua missão é marchar na vanguarda, sem deter-se ou desviar-se de seu caminho, avançar em linha reta em direção à Revolução Comunista".
Pelo contrário, do fato de a maioria dos operários da Inglaterra ainda seguir os Kerenski e os Scheidemann ingleses de não ter passado "ainda pela experiência de um governo formada por esses homens - experiência que foi necessária tanto na Rússia como na Alemanha para que os operários se passassem em massa para o comunismo deduz-se de modo infalível que os comunistas ingleses devem participar do parlamentarismo, devem ajudar a massa operária de dentro do parlamento a ver na prática os efeitos do governo dos Henderson e dos Snowden, devem ajudar os Henderson e Snowden a derrotarem a coalizão de Lloyd George e Churchill. Proceder de outro modo significa dificultar a marcha da revolução, pois se não se produz uma modificação nas opiniões da maioria da classe operária, a revolução torna-se impossível; e essa modificação se consegue através da experiência política das massas, e nunca apenas com a propaganda. A palavra de ordem: "Avante sem compromissos, sem desviar-se do caminho!" é claramente errada, se quem a propala é uma minoria evidentemente impotente de operários que sabe (ou, pelo menos, deve saber) que dentro de pouco tempo, no caso de, Henderson e Snowden triunfarem sobre Lloyd George e Churchill, a maioria perderá a fé - em seus chefes e apoiará o comunismo (ou, em todo caso, adotará uma atitude de neutralidade e, em sua maioria, de neutralidade simpática em relação aos comunistas). É a mesma coisa que se 10.000 soldados se lançassem ao combate contra 50.000 inimigos no momento em que é necessário "deter-se", "afastar-se do caminho", e até concertar um "compromisso" para esperar a chegada de um reforço prometido de 100.000 homens, que não podem entrar em ação imediatamente. É uma infantilidade própria de intelectuais e não uma tática séria da classe revolucionária.
A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções, e em particular pelas três revoluções russas do século XX, consiste no seguinte: para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam transformações; para a revolução é necessário que os exploradores não possam continuar vivendo e governando como vivem e governam. Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar. Em outras palavras, esta verdade exprime-se do seguinte modo: a revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete explorados e exploradores). Por conseguinte, para fazer a revolução é preciso conseguir, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou, em todo caso, a maioria dos operários conscientes, pensantes, politicamente ativos) compreenda a fundo a necessidade da revolução e esteja disposta a sacrificar a vida por ela ; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes atravessem uma crise governamental que atraia à política inclusive as massas mais atrasadas (o sintoma de toda revolução verdadeira é a decuplicação ou centuplicação do número de homens aptos para a luta política, homens pertencentes à massa trabalhadora e oprimida, antes apática), que reduza o governo à impotência e. torne possível sua rápida derrubada pelos revolucionários.
Na Inglaterra, e exatamente o discurso de Lloyd George o demonstra, entre outras coisas, desenvolvem-se a olhos vistos as duas condições de uma revolução proletária vitoriosa. E os erros dos comunistas de esquerda representam atualmente um singular perigo precisamente porque observamos em alguns revolucionários uma atitude pouco ponderada, pouco atenta, pouco consciente, pouco reflexiva com relação a cada um desses fatores. Se somos o partido da classe revolucionária, e não um grupo revolucionário, se queremos atrair as massas (sem o que corremos o risco de não passar de simples charlatães) devemos: em primeiro lugar, ajudar Henderson ou Snowden a vencer Lloyd George e Churchill (mais exatamente: devemos obrigar os primeiros a vencer os segundos, pois os primeiros tem medo de sua própria vitória!); em segundo lugar, ajudar a maioria da classe operária a convencer-se por experiência própria de que temos razão, isto é, da incapacidade completa dos Henderson e Snowden, de sua natureza pequeno-burguesa e traidora, da inevitabilidade de sua falência; e, em terceiro lugar, antecipar o momento em que, sobre a base da desilusão produzida pelos Henderson na maioria dos operários, se possa, com grandes probabilidades de êxito, derrubar de golpe o governo dos Henderson.
Se inclusive Lloyd George, político inteligentíssimo e resoluto, que não é pequeno burguês, mas sim grande burguês, debilita-se cada vez mais (com toda a burguesia), ontem por suas "rusgas" com Churchill e hoje por suas "rusgas" com Asquith, e perde a cabeça, com muito mais facilidade a perderão os Henderson. Falarei de modo mais concreto. Os comunistas ingleses devem, na minha opinião, unificar seus quatro partidos e grupos (todos muito débeis e alguns extraordinariamente débeis) num Partido Comunista único, baseado nos princípios da III Internacional e da participação obrigatória no parlamento. O Partido Comunista propõe aos Henderson e Snowden um "compromisso", um acordo eleitoral: marchemos juntos contra a coalizão de Lloyd George e os conservadores, repartamos os postos no parlamento proporcionalmente aos votos dados pelos operários ao Partido Trabalhista ou aos comunistas (não nas eleições, mas numa votação especial) conservemos a mais completa liberdade, de agitação, propaganda e ação política. Sem esta última condição é impossível, naturalmente, fazer a aliança, pois seria uma traição. Os comunistas ingleses devem reivindicar e alcançar a mais completa liberdade, que lhes permita, desmascarar os Henderson e Snowden, de modo tão absoluto como o fizeram (durante 15 anos, de 1903 a 1917) os bolcheviques russos em relação aos Henderson e Snowden da Rússia, isto é, os mencheviques.
Se os Henderson e Snowden aceitarem a aliança nessas condições, sairemos ganhando, pois o que nos interessa não é, absolutamente, o número de cadeiras no parlamento. Não é esse o nosso objetivo; nesse ponto seremos transigentes (enquanto os Henderson e, sobretudo, seus novos amigos - ou seus novos amos - os liberais que ingressaram no Partido Trabalhista, correm atrás disso mais que de qualquer outra coisa). Teremos ganho porque levaremos nossa agitação às massas num momento em que o próprio Lloyd George as terá "irritado', e ajudaremos não só o Partido Trabalhista a formar mais depressa o seu governo, como também as massas a compreenderem melhor toda nossa propaganda comunista, que realizaremos contra os Henderson sem nenhuma limitação, sem nada silenciar.
Se os Henderson e Snowden repelirem a aliança conosco, nessas condições, teremos ganho ainda mais, pois teremos mostrado na hora às massas (levem em conta que inclusive dentro do Partido Trabalhista Independente, puramente menchevique, completamente oportunista, as massas são partidárias dos Soviets) que os Henderson preferem sua intimidade com os capitalistas à união de todos os trabalhadores. Teremos ganho imediatamente ante a massa, a qual, sobretudo depois das explicações brilhantíssimas, extremamente acertadas e úteis (para o comunismo) dadas por Lloyd George, simpatizará com a idéia da união de todos os .operários contra a coalizão de Lloyd George com os conservadores. Teremos ganho desde o primeiro momento, pois teremos demonstrado às massas que os Henderson e Snowden receiam vencer Lloyd George, receiam tomar o Poder sozinhos e aspiram a conseguir em segredo o apoio de Lloyd George, que estende a mão abertamente aos conservadores contra o Partido Trabalhista. É preciso lembrar que na Rússia, depois da revolução de 27 de fevereiro de 1917 (calendário antigo), o êxito da propaganda dos bolcheviques contra os mencheviques e social-revolucionários (isto é, os Henderson e Snowden russos) foi devido precisamente às mesmas circunstâncias. Dizíamos aos mencheviques e aos social-revolucionários: tomem todo o Poder sem a burguesia, posto que vocês têm a maioria nos Soviets (no I Congresso dos Soviets de toda a Rússia, celebrado em junho de 1917, os bolcheviques não tinham mais que 13% dos votos). Mas os Henderson e Snowden russos tinham medo de tomar o Poder sem a burguesia, e quando esta adiou as eleições para a Assembléia Constituinte porque sabia perfeitamente que os social-revolucionários e os mencheviques alcançariam a maioria(2) (ambos formavam um bloco político muito estreito, representavam praticamente uma só democracia pequeno-burguesa), os social-revolucionários e os mencheviques ficaram impotentes para lutar com energia e até o fim contra esses adiamentos.
Se os Henderson e Snowden se negassem a formar uma aliança com os comunistas, estes sairiam ganhando de imediato, pois conquistariam a simpatia das massas, enquanto os Henderson e Snowden ficariam desacreditados. Pouco nos importaria então perder algumas cadeiras no parlamento por causa disso. Só apresentaríamos candidatos num número ínfimo de circunscrições absolutamente seguras, isto é, onde isto não representasse a vitória de um liberal contra um trabalhista. Realizaríamos a nossa campanha eleitoral distribuindo volantes de propaganda do comunismo e convidando o povo, em todas as circunscrições em que não apresentássemos candidato, a votar no trabalhista contra o burguês. Enganam-se os camaradas Sylvia Pankhurst e Gallacher se vêem nisso uma traição ao comunismo ou uma renuncia à luta contra os social-traidores. Pelo contrário, não há dúvida de que a causa da revolução sairia ganhando.
Hoje em dia, é muito difícil para os comunistas ingleses inclusive aproximar-se das massas, fazer com que elas os ouçam. Contudo, se me apresentar como comunista e, ao mesmo tempo, convidar a votar em Henderson contra Lloyd George, é certo que serei ouvido. E poderei explicar de modo acessível não só por que os Soviets são melhores que o parlamento e a ditadura do proletariado melhor que a ditadura de Churchill (mascarada sob o rótulo de "democracia", burguesa), como também por que eu gostaria de sustentar Henderson com meu voto do mesmo modo que a corda sustenta o enforcado; que a aproximação dos Henderson a um governo formado por eles mesmos demonstrará a minha razão, atrairá as massas para o meu lado e acelerará a morte política dos Henderson e Snowden, exatamente como aconteceu com seus correligionários na Rússia e na Alemanha.
E se replicarem dizendo que esta tática é muito "astuta" ou complicada, que as massas não a compreenderão, que dispersará e desagregará nossas forças impedindo-nos de concentrá-las, na revolução soviética, etc., responderei aos meus contestadores "de esquerda": não atribuam às massas o seu próprio doutrinarismo ! É de supor-se que na Rússia as massas não são mais cultas, mas, pelo contrário, que são menos cultas que na Inglaterra. Apesar disso, compreenderam os bolcheviques; e, em vez de prejudicá-los, favoreceu-os o fato de, nas vésperas da revolução soviética de setembro de 1917, comporem, listas de candidatos seus ao parlamento burguês (à Assembléia Constituinte) e tomarem parte, no dia seguinte à revolução soviética de novembro de 1917, nas eleições para essa mesma Constituinte, dissolvida por eles no dia 5 de janeiro de 1918.
Não posso examinar pormenorizadamente a segunda divergência entre os comunistas ingleses, consistente em se devem ou não aderir ao Partido Trabalhista. Tenho pouquíssimos dados sobre essa questão extremamente complexa, dada a extraordinária originalidade do "Partido Trabalhista" Britânico, muito pouco parecido estruturalmente com os habituais partidos políticos do continente europeu. Mas não há dúvida de que, em primeiro lugar, também incorre inevitavelmente em erro quem deduz a tática do proletariado revolucionário de princípios como este: "0 Partido Comunista deve conservar pura a sua doutrina e imaculada a sua independência frente ao reformismo; sua missão é marchar na vanguarda, sem deter-se ou desviar-se de seu caminho, avançar em linha reta em direção à Revolução Comunista". Princípios como este só fazem repetir o erro dos comunardos-blanquístas franceses, que em 1874 proclamavam a "negação" de todo compromisso e de toda etapa intermediária. Em segundo lugar, não há dúvida de que nesse ponto a tarefa consiste, como sempre, em saber aplicar os princípios gerais e fundamentais do comunismo às peculiaridades das relações entre as classes e os partidos, às peculiaridades do desenvolvimento objetivo rumo ao comunismo, próprias a cada pais e que é necessário saber estudar, descobrir e prever.
Mas é preciso falar a respeito disso não só em relação ao comunismo inglês, mas sim em relação às conclusões gerais que se referem ao desenvolvimento do comunismo em todos os países capitalistas. Este é o tema que vamos abordar agora.