Hoje, ao ler um artigo de um
blog muito interessante, que mencionava uma notícia sobre o super-homem, decidi escrever sobre o assunto que me tem vindo a martelar há umas semanas: a política e os comic. Porém, não vou entrar tão a fundo na matéria que me leve a viajar por sendas que já trilhei e que, como proposta deste texto, resultariam ainda mais aborrecedoras que o mesmo.
Personagem que me interessa desde o ponto de vista (de momento) académico, o batman, poderia justificar quatro ou cinco páginas de um livro, ainda que, não por evitá-lo deixarei de referir a sua traiçoeira adição às endorfinas, a esse ópio endógeno que se produz na tentativa orgânica de alcançar o equilíbrio homeostático perdido no reviver de experiencias semelhantes a outras traumáticas (como quando, apontando-lhe com um revólver, assassinam seus pais) ou, em situações inusitadas, sempre negativas. Enfim, à justificação da sua pseudo-altruísta inquietação pela defesa da população, desde uma clara eleição de classe... Burguesa, egocentricamente hedonista.
Nesse sentido, e aproveitando a onda que se conforma, na espontânea tentativa de análise sobre uma tão proeminente figura desse universo aos quadradinhos, onde muitos de nós vivemos momentos da nossa vida, fundamentalmente na etapa de crescimento, continuarei, procurando contribuir para uma interpretação distinta de outra personagem com estatuto superior, o super-homem.
O super-homem, “Superman” para evitar confusões com outros tipos de anticristo, abandonado pelos seus pais, quando estes decidem perecer por não se legitimarem sem feudo e incapazes, como reaccionários, de afrontar o desafio de partilhar e integrarem novas e desconhecidas realidades; vítima da cobardia dos progenitores, cai na terra (“América”, enorme, onde qualquer homem de boa fé, um bebé, um inocente, podem estar seguros), em terreno lavrado, cheio de vida potencial, que, como de forma “comum” nessas esplêndidas e generosas paragens, pertence a um só casal. Desfrutando de uma infância cómoda, abstémia, casta, alienada da mundana humanidade, e curiosa e paradoxalmente, exemplarmente abnegado humilde limpa-botas dos filhos dos vulgares abastados homens que abundam nesse paraíso, consegue compensar com trabalho os escassos recursos que os seus anciãos tutores dispunham para a sua educação, graduando-se ("doutorando-se", em Portugal), em jornalismo. Meritório esforço (ainda que de quem não sua), mas, básica e tácita apologia de um paradigma de submissão e competição, de uma assumida clivagem classista capitalista ultra-ortodoxa, onde a emancipação se outorga em “canudos”.
Recapitulando, nesta inicial aproximação ao “SM” – abreviando como se estila actualmente -, começo por concluir que segundo os guionistas e a censura norte-americana, o abandono de menores deve ser legalizado, e quem diz abandono diz venda, sempre que os pais não tenham possibilidades de manutenção do menor. Conclúo também que, cair na América, ainda que de forma aleatória, é uma sorte acompanhada de oportunidades, sempre que nos aborreguemos o suficiente.
Mais importante, para terminar este primeiro inciso, encontro uma diferença assinalável entre a aposta por um progresso sustentado “também” nas centenas de, pelas mais diversas razões, “Mitchourines*”, elemento central da intelectualidade, e outra forma, a qual, reiterando e defendendo a prevalência do estabelecido, cuidando a marisma, apenas reconhece idoneidade ou razão fundamentada, ou mesmo pondera somente a argumentação; atribui valor, aos formados segundo seculares critérios programáticos redutores.
Noutros âmbitos, contra a emancipação do indivíduo, existe o Hulk. Para nos fixar num mundo sombrio, solitário, insolidário, frente a um copo que depois de vazio tentamos romper com o poder da mente e que por tal logro vazamos cada vez com maior diligência, estão os X-men, com o seu chefe numa cadeira de rodas, mas, claro, estes seriam só o veludo.
Voltando ao nosso, deles, homem, e para não nos alargarmos muito mais, uma constatação simples é a de que o “SM” foi mesmo criado como elemento estrutural, e estructurante, da estratégia de manipulação imperialista. Se nos detivermos em aspectos paralelos, perceberemos que, este é o único super-herói que necessita disfarçar-se para viver entre a população - isto numa das maiores metrópoles do mundo -, que começa por querer identificar-se com o entorno, facto que permite extrapolar que o comportamento de um ser especial (da população americana que pretende imitar, tornando-a extraordinária; dos valores americanos) é temeroso na sua relação com o semelhante (distante), dócil com o patrão (cash), austero aos sentimentos (privilégio do homem); deve ser voluntarioso e humilde para com os seus inferiores, inferiores (como para decidir quando como e onde levar a cabo invasões solidárias ou defesa de conflitos previamente criados); que ainda sendo todo-poderoso não deve submeter (ou mais bem, não mostra submeter) mais que os vilões por ele ajuizados (possuidores de arsenais nucleares, por exemplo), e que, tudo faz com a consciência de poder cometer erros como um humano, com as suas kriptoniticas e humanas debilidades (não existindo Haya para os soldados americanos). Em suma, olhamos para alguém que podendo dominar o mundo prefere, aparentemente, dominar-se a si (perdoando-nos a vida).
No caso do homem-aranha... sendo um cientista, é o único capaz de afirmar na sua biografia que, a interacção conscientemente respeitadora entre espécies, no seu caso e sem sequer ter esborrachado a aranha, pode ser benéfica (afinal existe sempre um vínculo filogénico). Tomando esta figura híbrida, entrando noutro ramo da sua área de formação enquanto simples humano, em diferente matéria, concretamente segundo as últimas conclusões da neurociência, a forma mais efectiva para aturdir o povo; impor o pensamento único, é mesmo bombardeá-lo com opções, tantas quantas as necessárias para o paralisar, para que este, mesmo podendo actuar não possa decidir fazê-lo. Ora, se uma das faculdades que conformam a espécie humana, no que à psicobiologia concerne, é a capacidade de decisão, ao ser impedidos de escolher entramos numa espiral depressiva. Apáticos, indiferentes, tornamo-nos – como o batman -, depressivo-dependentes ou, dependentes das substancias que o nosso corpo segrega quando nos deprimimos, votando em quem sabemos nos roubará o que puder, nos retirará os direitos outrora conquistados lutando; incapazes de assumir a responsabilidade de mudar em direcção a uma sociedade transformada (como pais de um imaginário super-homem). Enquanto isso, o mundo gira e avança, e nós com ele, sem preconizarmos a vida com que trazemos agarrada ao nascer. Permanecemos hirtos, como num prado onde a contemplação se extende até um horizonte com escritura de propriedade.
Em Portugal, mais de 45% da população sofreu psicopatologias, actualmente estão diagnosticados e medicados, aproximadamente 25% dos portugueses, um dos rácios mais altos do continente (incluindo países frios onde a população, bastante mais individualista, obtém uma taxa de suicídios extremamente elevada, sabendo que os últimos trabalhos apontam também a que não ter amigos se pode considerar tão nocivo quanto fumar. Tese esta, última, à qual me atrevo a acrescentar um factor também ecológico, o paisagístico), nada inexplicável depois de 48 anos de repressão e obscurantismo, onde a impossibilidade de eleger era imposta abruptamente, uma forma prematura do esquema de condicionamento que hoje se continua a aplicar, com alcance mais global, e que, prova o trabalho de escolas como Tavistock.
A modo de conclusão, sem ter andado por Zeus e seu pai, nem querendo que este se revele referência sequer para seu filho: Fundamental será manter acesos os alarmes anti-demagogia, evitar ver a realidade através dos quadradinhos nos quais diariamente nos tentam enclausurar o pensamento; ver com olhos de ler, para que não se imponha uma espécie de neo-linguagem transmissora de um guião escrito na vida de outros, que podia ser a nossa, internacional. Nessa luta, a dificuldade é inversamente proporcional à dimensão da “cultura integral do indivíduo”.
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* Mitchourine:
"Era uma vez...
Todas as histórias fantásticas começam assim. Mas esta que vou contar, inspirada num livro famoso de Iline, nada tem de fantasia.
Há 45 anos, numa cidadezinda de mal conhecido e longínquo país, vivia um homem que se chamava Mitchourine. Era modesto empregado da estação, incumbia-se de vigiar o relógio da gare: dar-lhe corda e acertá-lo.
Triste destino este de ver passar o tempo e os comboios numa gare sombria, aberta tanto ao vento como aos passageiros, desconfortante como todas as gares.
Ele, que fora criado no campo e se debruçara, encantado, sobre o mistério da vida das plantas; que passara dias e dias a ver florir um simples botão de macieira brava; envelhecia agora a vigiar o ponteiro das horas, sempre iguais.
No inverno, quando a neve esbatia contornos e arrasava de brancura a planície, Mitchourine encostava-se aos pilares álgidos da gare e ficava tempo esquecido a olhar um ponto distante, para além do horizonte baço, indefinível... Via talvez, em pensamento, as árvores que tanto admirava, vergadas ao peso da neve, hirtas de frio e rijas como cadáveres. E sofria por elas.
Depois, à noite, aconchegada mais a gola do casaco de trinta invernos, ia meter-se em casa, a sós com os seus livros, arranjados não se sabia como nem onde. Lia, fumava no seu cachimbo e esperava.
Até que um dia, o comboio que chegava sempre para os outros, chegou também para ele. Vendeu a casinha que fora de seus pais, juntou as poucas economias e abalou para os arredores da cidade, onde adquiriu, em pleno campo, um pequeno talhão com árvores de fruto, entre as quais passou a viver, em mísera cabana.
Realizara, enfim, o seu sonho. Era perseverante e forte de vontade como os sábios, este Mitchourine. E porque era, decidiu fazer uma coisa audaciosa: substituir as árvores quase selvagens do seu país por outras que dessem frutos belos e saborosos como as fruteiras do Ocidente.
Estas, não resistiam às temperaturas negativas do Inverno? A ciência daquele tempo não desvendara ainda os mistérios da hereditariedade? Pouco importava isso a quem confiava na inteligência e no trabalho. Mitchourine recolheu o pólen das flores da pereira beurré-royal e fecundou as flores da pereira autóctone, selvagem. Cinco pêras irmãs nasceram deste cruzamento - cinco frutos da tenacidade do ex-vigilante de relógios, o qual passou a vigiar dia a dia, ano a ano, com cuidados paternais, a fixação dos caracteres das novas fruteiras, que tomaram o seu nome.
Depois, foi mais longe na sua audácia: cruzou a maçã brava com a cereja, a sorva, a groselha - e obteve frutos bizarros, com sementes bicornes, irregulares. E nos viveiristas da cidade começaram a aparecer plantas estranhas, que não temiam os frios rigorosos, e davam frutos de polpa e de cores vivas, como que beijadas pelo sol dos trópicos.
Um ano houve em que todas as cerejeiras do Canadá morreram de frio. Todas, menos a "Mitchourine", que resistia a 40º negativos.
Como se adivinha, já então as plantas do extraordinário fruticultor corriam mundo. Ele, porém, continuava a morar na sua barraca tosca, entre viveiros.
Há sábios assim: homens que servem a humanidade e de quem a humanidade não fala...
Não obstante, Mitchourine não foi esquecido. Vinte anos mais tarde, abriu com mãos trémulas de velho um telegrama que dizia: "As experiências de culturas novas têm enorme significado. Enviai-me um relatório dos vossos trabalhos." E, no lugar da assinatura, estava escrito o nome do primeiro chefe do país.
Desde aí, Mitchourine trabalha num viveiro com muitos hectáres de tamanho, e dirige um Instituto de ciência experimental, que tem o seu nome. Na gare sombria da estação em que ele fora modesto vigilante de relógio começaram a descer centenas de estudantes, ciosos do saber e experiência do mestre...
Esta história verídica tem um conceito, como todas as histórias: só será progressivo o país que saiba encontrar os seus Mitchourine entre os filhos do campo.
Soeiro Pereira Gomes - Alhandra, Janeiro de 1943."