quarta-feira, outubro 01, 2008

O socialismo foi traído - Entrevista com Roger Keeran e Thomas Kenny (II)

Ainda consciente de minimas peculiaridades, em aspectos quase irrelevantes, no relativo à observação sobre Karl Marx, termino, com esta segunda parte, a trascripção da entrevista do PCUSA publicada pelo jornal "Avante".
«O socialismo é uma construção consciente»

Foi então o acumular de problemas na época de Bréjnev que condicionou as reformas dos anos 80?
TK – Nos anos 80, os problemas eram evidentes para todos, mas a questão-chave que se colocava era qual das duas tendências tradicionais no partido os iria resolver: a tendência de direita ou a tendência de esquerda?…Infelizmente já conhecemos a resposta…
RK – Mas Bréjnev não teve apenas aspectos negativos. No plano internacional obteve a paridade militar com os Estados Unidos e ajudou os movimentos revolucionários em várias regiões do mundo. Este esforço no plano militar e no plano da solidariedade internacionalista exigiu importantes recursos que não puderam ser utilizados para suprir necessidades domésticas. Talvez também por esta razão, que, durante este período, se tenha fechado os olhos ao sector privado ilegal que se desenvolvia nas franjas da economia socialista. Esta espécie de «pacto» com a «segunda economia» permitiu o surgimento de uma camada que ficou conhecida como «os milionários de Bréjnev», que, eram pessoas que fizeram fortunas através de redes de corrupção toleradas pelo poder, tendo sido essa é uma realidade pouco falada, sobretudo no que respeita às proporções que atingiu na sociedade soviética…
TK – Bem, trata-se de um sector ilegal, por isso não há números oficiais, o que torna o seu estudo difícil…
RK – Mas é verdade que se trata de um fenómeno ignorado e não reconhecido pela literatura marxista. A «segunda economia» foi sempre vista como um resquício do capitalismo que desapareceria à medida do avanço do socialismo. Contudo, há alguns estudos que nos mostram que o seu peso estava longe de ser negligenciável. Por exemplo, é interessante comparar o período de Bréjnev com os primeiros meses da direcção de Andrópov em termos de processos criminais instruídos por actividades económicas ilícitas. Por outro lado, verificamos que nos anos de Bréjnev não houve praticamente condenações pela prática deste tipo de crime, mesmo quando os casos chegaram a ser julgados em tribunal. Com Andrópov esta situação alterou-se radicalmente, muitas pessoas foram condenadas nesse período.
No vosso livro, não dedicam muito espaço à análise do chamado «relatório secreto» apresentado ao XX congresso do PCUS por Khruchov sobre o «culto da personalidade», mas referem a necessidade de reavaliar o período comummente designado por «stalinismo», notando que enquanto tal não for feito, os comunistas continuarão prisioneiros do passado.
Querem explicar?
RK – Quando começámos a escrever o livro essa questão colocou-se e tivemos de tomar uma decisão. Decidimos que não iríamos entrar no tema quente de Stáline. Há muitos preconceitos enraizados e, sobretudo, há muitas coisas que não conhecemos suficientemente para podermos desmontar ideias feitas e diariamente repetidas sobre Stáline. A única coisa que fizemos, ou pelo menos tentámos, foi abrir a porta a este assunto. Nós não temos todas as respostas sobre Stáline e a sua época, e seria um erro pensar que temos. Há muitos aspectos históricos e políticos que precisamos de absorver e compreender.
Contudo, praticamente todas as conquistas do socialismo que enumeram na introdução do livro foram alcançadas em particular durante os anos 30, sob a direcção de Stáline…
TK – É um facto, mas tivemos de fazer uma opção entre tratar toda a questão ou apenas o que consideramos ser a questão-chave. Por acaso, a maioria dos ataques ao nosso livro por parte de marxistas ou pseudo-marxistas, sociais-democratas ou comunistas revisionistas centraram-se precisamente na questão de Stáline. Não contestaram nada do que dissemos sobre Gorbatchov nem sobre a «segunda economia», apenas nos censuraram por sermos demasiado brandos com Stáline e por não termos reconhecido que Stáline era um monstro, um louco, um carniceiro.
Esta questão no Partido Comunista dos Estados Unidos é particularmente sensível,
mas, se a tese do vosso livro está correcta, então as políticas de Stáline terão sido as mais correctas e as únicas que podiam garantir a construção socialismo e defender as conquistas revolucionárias?
RK – O ódio a Stáline é tão cego e intenso que alguns críticos do nosso livro dizem que estamos errados e insistem que Stáline foi a causa do colapso da URSS. Vem a propósito uma reflexão vossa sobre a importância do factor subjectivo no socialismo. Segundo afirmam, o papel dos dirigentes é mais decisivo no socialismo do que no capitalismo.
Porquê?
TK – O capitalismo cresce enquanto que o socialismo é construído. No livro utilizamos uma metáfora em que comparamos o capitalismo a uma jangada a descer um rio. As possibilidades de dirigir a jangada são reduzidas, ela é arrastada pela força da corrente e apenas se podem fazer algumas pequenas correcções na trajectória. Nesta metáfora, o socialismo é um avião, o qual apesar de ser um meio de transporte incomparavelmente superior exige ser pilotado por uma equipa bem preparada científica e tecnologicamente, capaz de compreender e aplicar conscientemente as leis da ciência. Ou seja, apesar de o avião ser um sistema superior é vulnerável num sentido em que a jangada não o é. Isto não significa obviamente que devamos abandonar o avião e voltar à jangada, assim como não podemos voltar ao tempo das cavernas, apesar de as nossas casas poderem ruir.

O Socialismo Traído - Extractos

«A interpretação do colapso soviético envolve um combate pelo futuro. As explicações ajudarão a determinar se no século XXI os trabalhadores irão uma vez mais “lançar-se ao assalto do céu” para substituir o capitalismo por um sistema melhor.»«Depois de 1953, começou a crescer dentro do socialismo uma nova base económica para as ideias burguesas.»
«Tais elementos que tinham (…) diminuído drasticamente com a colectivização da propriedade sob Iossif Stáline voltaram a aparecer com a chamada liberalização de Nikita Khruchov.»
«A abordagem de Khruchov (…) ia contra o aviso dado por Stáline em 1952 de que “deixar de dar primazia à produção de meios de produção» iria “destruir a possibilidade da expansão contínua da nossa economia”.»
«Em Maio de 1957 Khruchov aboliu os mais de 30 ministérios de planificação central e substituiu-os por mais de 100 conselhos económicos locais. (…) A economia soviética cresceu a uma taxa mais lenta na segunda metade da década de 50 do que na primeira e cresceu a uma taxa mais lenta nos primeiros cinco anos da década de 1960 do que na de 1950.»
«Khruchov avançou (…) a ideia de que o PCUS deixara de ser apenas a vanguarda do proletariado para se tornar a vanguarda de “todo o povo” e de que a ditadura do proletariado se tornara o “Estado de todo o povo”.»
«Khruchov fez diversas mudanças no modo de funcionamento do Partido que diluíram o seu papel dirigente.»
«Toda a ideia de que a luta de classes terminou num mundo ainda dominado pelo capitalismo e pelo imperialismo, ou no interior de um Estado socialista, é ela própria uma manifestação da luta de classes a um nível ideológico.»
«A actividade económica privada (…) emergiu com uma nova vitalidade no tempo de Khruchov, floresceu com Bréjnev e em muito aspectos substituiu a economia socialista primária no tempo de Gorbatchov e de Ieltsin.»
«Grossman descobriu que no final da década de 70 a população urbana (que constituía 62% da população total) ganhava cerca de cerca de 30% do seu rendimento total a partir de fontes não oficiais, ou seja, da actividade privada quer legal quer ilegal.»«Nas últimas três décadas e meia de existência da URSS, quanto mais se introduziam relações de mercado e outras reformas (…) mais as taxas de crescimento económico a longo prazo decresciam.»
As taxas de crescimento soviéticas mais rápidas que se alcançaram ocorreram em 1929-1953, quando a direcção soviética defendia firmemente a planificação central e suprimiu as relações de mercado anteriormente toleradas durante a NEP de 1921-1929.»
«(…) O “ano Andrópov” (1983) revelou um rumo de reformas promissor, completamente diferente do caminho escolhido por Gorbatchov, que se revelou desastroso.»
«O colapso soviético não era inevitável. Não tem qualquer fundamento a conclusão alardeada nos media do grande capital de que o socialismo soviético estava condenado desde o início.»
«(…) O descontentamento popular surgiu no final e não no início das reformas de Gorbatchov. Foi um efeito das políticas de Gorbatchov e não a sua causa.»
«Gorbatchov e os seus defensores afirmaram que ele herdou uma sociedade em crise. Isto é falso. Em todos os sentido convencionais, a União Soviética não caíra na agonia de uma crise.»
«O socialismo soviético tinha muitos problemas (…) Contudo, corporizava a essência do socialismo tal como definido por Marx – uma sociedade que derrubara a propriedade burguesa, o “mercado livre”, o Estado capitalista, substituindo-os pela propriedade colectiva, a planificação centralizada e um Estado operário.»
«Segundo a UNESCO os cidadãos soviéticos liam mais livros e viam mais filmes do que qualquer outro povo no mundo. Todos os anos o número de visitantes dos museus correspondia a quase metade da população.»
«Os defensores da superioridade da democracia ocidental ignoram a exploração de classe, concentram-se no processo e não na substância e atribuem o mérito das realizações da democracia ao capital e não ao seu real defensor e promotor, a classe operária moderna.»
«O governo americano trabalhou sistematicamente com os sauditas e a OPEP para baixar o preço do petróleo no mercado mundial, uma jogada que ajudou a economia americana ao mesmo tempo que arruinava os soviéticos.»«Em 1985 os sauditas aumentaram a sua produção petrolífera de menos de dois milhões de barris ao dia para nove milhões. No espaço de cinco meses, o preço do petróleo caiu para 12 dólares o barril.»
«A URSS era demasiado forte para ser desestabilizada externamente. A escalada bélica dos EUA podia pressionar a URSS, mas não destruí-la.»
«Antes de Gorbatchov ter chegado ao poder, a influência ideológica da segunda economia tornou-se evidente no interior do Partido Comunista e do governo soviético.»
«A doutrina da coexistência pacífica, originalmente uma forma de luta anticapitalista por todos os meios excepto os militares, mudou para “valores humanos universais”, expressão que viria a ser usada para justificar a aliança com o imperialismo.»
«No espaço de um ano, Gorbatchov substituiu mais de 50% dos membros efectivos e suplentes do Politburo. Substituiu 14 dos 23 dirigentes de departamentos do Comité Central, cinco dos 14 presidentes de repúblicas e 50 dos 157 primeiros secretários de krais (regiões) e oblasts (distritos). Gorbatchov substituiu 40% dos embaixadores, alterou muitos ministérios e afastou 50 mil gestores.»
«Gorbatchov transformou o significado da Glasnost, de abertura do Partido e de outras organizações para crítica aberta ao Partido e à sua história.»«No crucial plenário do CC de Janeiro de 1987, sob o slogan de “democratização”, teve início a exclusão do PCUS do poder político e económico.»
«Os dirigentes económicos de Gorbatchov converteram a organização da juventude comunista (Komsomol), com 15 milhões de membros, num centro de formação para jovens empresários. Usando recursos do Komsomol, os jovens capitalistas russos fundaram os primeiros bancos comerciais e bolsas do país.»
In Roger Keeran e Thomas Kenny, O Socialismo Traído – Por Trás do Colapso da União Soviética, Edições Avante!, 2008

4 comentários:

Ana Camarra disse...

CRN

Só esta de um homem que comungava dos nossos ideiais.

"Depois que nossos pés andaram toda a terra,
cruzaram caminhos, devassaram florestas, escalaram montanhas
e volveram sangrentos riscando as estradas do mundo;
depois que o mar é um murmúrio azul de águas fáceis
e se foi o mistério que havia nas distâncias,
evaporado como espuma na quilha dos navios;
depois que nossas mãos mergulharam na noite milenária,
tocaram luas mortas, revolveram estrelas
e enfim! acenaram escorrendo luz de sóis:
- por que não vamos colher os frutos que nós semeámos?
porque não vamos, irmãos, porque não vamos?!"

Manuel da Fonseca


Um Beijo

Anónimo disse...

ahahahah Caro amigo CRN...gozo á brava e admiro a tua paciência com aquele idiota anarquista "ferroadas"que como dizes e bem apenas quer fazer barulho....enfim como sabemos são uns idiotas inconsequentes que só favorecem os capitalistas neo-liberais...é exactamente manifestações dessas que eles querem para demonstrarem que não podem tolerar a bagunça e a desordem.....! Abraço

Mário Pinto disse...

Ana,
Porque já não somos nós?

a revolução é hoje!

Mário Pinto disse...

Mugabe,
É justamente o que querem, mas, como tu sabes, o comunismo é solidariedade, esclarecimento, dia-a-dia, em todos os lugares, uma pena que o medo e o preconceito ainda coibam a afirmação do individuo.

A revolução é hoje!