segunda-feira, março 30, 2009

DECLARAÇÃO DO ENCONTRO CDU DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS NA EUROPA


As eleições deste ano nas quais os portugueses residentes no estrangeiro vão participar – Parlamento Europeu e Assembleia da República – constituem uma oportunidade singular para a afirmação, pelos seus resultados, de uma clara condenação da política de direita e da acção do Governo do PS, de uma clara exigência de um novo rumo na vida política para o País e para a Europa e, em consequência, na política para as comunidades portuguesas.
Em trinta e três anos de política de direita, e em especial nos últimos 4 anos de Governo PS, o País conheceu desenvolvimentos de agravamento da situação do povo e do país: pioraram as condições de vida dos trabalhadores e do povo; aumentaram as desigualdades e a exploração; agravou-se a injustiça na distribuição do rendimento nacional; acentuou-se o estrangulamento dos orçamentos das famílias; condenaram à ruína milhares de agricultores e de micro, pequenos e médios empresários. Estes desenvolvimentos, a par de tornar o país mais dependente e menos democrático, têm empurrado milhares e milhares de trabalhadores para a emigração, onde se incluem jovens à procura de um primeiro emprego, muitas vezes em condições de enorme precariedade. Ao mesmo tempo afasta a perspectiva de um regresso ao país, sonho acalentado ao longo de anos, por muitos emigrantes.
A União Europeia, a par dos sucessivos governos, tem estado no centro da ofensiva contra os trabalhadores, o povo e o País. Nos últimos 5 anos acentuaram-se os principais eixos da integração capitalista da EU, o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo; atacaram-se os itos e conquistas dos trabalhadores, tentando alargar horários de trabalho, precarizando cada vez mais as relações laborais, atacando a contratação colectiva e a acção sindical; avançou a privatização a privatização e a liberalização de amplos sectores, nomeadamente os serviços públicos, incluindo a segurança social; aprofundou-se o militarismo e a corrida ao armamento em parceria com a NATO e os Estados Unidos; acentuou-se o seu carácter antidemocrático com a
tentativa de impor o novo tratado da UE, sem debate e sem referendo em Portugal.
PS, PSD e CDS têm, no essencial, estado de acordo com estas orientações e políticas.
O BE acompanha as teses federalistas de “mais UE”, negando o papel fundamental da soberania nacional na luta em defesa dos interesses do povo e do País e por uma outra Europa.
Ao contrário do que os responsáveis pela política de direita procuram fazer crer, as razões que conduziram à actual situação nacional, não são de agora, nem residem apenas no agravamento da crise do capitalismo. As razões residem, sim, na acção conjugada e convergente do PS, PSD e CDSPP, nestes mais de trinta anos de governação do país e em mais de vinte anos de participação de Portugal na União Europeia.
O Encontro da CDU caracteriza a política do Governo PS dirigida às comunidades portuguesas por uma acção governativa que, ao contrário dos discursos demagógicos e propagandísticos, não tem tido em devida conta o peso e a importância das comunidades portuguesas no todo nacional: desinveste no ensino da língua e cultura portuguesas nas comunidades portuguesas; encerra e despromove consulados de carreira com evidentes prejuízos para os utentes; recorre a mecanismos administrativos e financeiros para dificultar o funcionamento autónomo do Conselho
das Comunidades; reduz substancialmente o porte -pago aos órgãos de informação; põe termo à conta “poupança emigrante”; mantém a discriminação aos exmilitares emigrantes na contagem de tempo para efeitos de reforma.
Para o PCP e a CDU e todos aqueles que se têm oposto a esta política, as eleições podem e devem constituir, no momento do voto, uma clara afirmação da vontade de uma ruptura com a política de direita dos sucessivos governos e as orientações da UE, sendo certo que o reforço da influência do PCP e da CDU é a garantia de uma política alternativa de esquerda.
O Encontro da CDU denuncia e alerta para as manobras do Governo e do PS que procura alimentar as suas ambições de manutenção do poder absoluto, em nome da crise e da “governabilidade”. Ao contrário do que o PS pretende, o que o país precisa e reclama é de uma política que: ponha fim à instabilidade política e social agravada pela governação absoluta do PS; melhore as condições de vida dos trabalhadores; altere o agravamento das assimetrias regionais; afirme a soberania e os interesses nacionais; potencie a importância das comunidades portuguesas como vector estratégico nas orientações da política externa e como parte integrante da política nacional.
Em suma, uma política ao serviço de Portugal e do povo português que vive dentro e fora do país, em que o direito constitucional de emigrar deixe de ser uma gravosa alternativa à falta de emprego e de emprego com direitos, fruto da política de direita que agrava as condições de vida dos trabalhadores e das suas famílias, por via do aumento do desemprego, da destruição do aparelho produtivo e provocando a desertificação de vastas regiões do país.
A CDU é um espaço de convergência de causas e lutas onde cabem todos os trabalhadores, os micro pequenos e médios empresários da industria, do comércio e dos serviços, os reformados, as mulheres e os jovens, que não se resignam com as políticas ruinosas prosseguidas ao longo de anos em Portugal e nas Comunidades, com as potencialidades desperdiçadas pelos partidos PS, PSD e CDSPP, que têm governado o país.
A CDU apresenta-se a estas eleições como a grande força de esquerda, espaço de convergência e acção unitária de todos quanto aspiram a uma mudança de política, portadora de um claro projecto de ruptura com a política de direita e de cujo reforço depende uma viragem na política nacional e a construção de uma nova política e um novo rumo para Portugal e na Diáspora.
A CDU defende uma nova política que rompa, de facto, com a repetida alternância entre PS e PSD – com ou sem o CDSPP – que há já demasiados anos nos governa.
Uma nova política que reconheça nas comunidades portuguesas um vector estratégico ancoradas na política externa, que afirme Portugal como um país livre e soberano que, rompendo com a subserviência face às imposições da União Europeia, assegure a defesa intransigente dos interesses nacionais e de uma política de cooperação e paz entre os povos.
Uma nova política que defenda e valorize a língua e cultura portuguesas no estrangeiro, e, através de uma linha de acção própria, promova o ensino da língua e cultura nas comunidades, e, em particular, como forma de manter e reforçar os laços com Portugal das novas gerações de lusodescendentes.
Uma nova política de apoio ao movimento associativo das comunidades, no respeito pela sua identidade e diversidade, bem como o apoio aos órgãos de informação da nossa diáspora.
Uma nova política que garanta serviços consulares modernos, eficazes e acessíveis a quem deles necessite, em conformidade com os interesses do país e das comunidades e que possam responder eficazmente aos novos problemas decorrentes dos novos fluxos emigratórios.
Uma nova política que potencie a captação das remessas dos emigrantes, promovendo e estimulando investimentos produtivos com vista à criação de emprego, contribuindo para o efectivo desenvolvimento regional, um maior equilíbrio territorial e uma maior coesão económica e social das várias regiões do país de onde são originários os emigrantes.
Uma nova política que tenha em atenção a situação dos reformados que trabalharam no estrangeiro e que lhes seja: - reconhecida, em Portugal, a situação de invalidez desde que a mesma, legalmente, lhes seja atribuída no estrangeiro; - reconhecida sem qualquer penalização, em Portugal, a situação de reformado, antes dos 65 anos de idade, desde que aos mesmos, legalmente lhes seja atribuída no estrangeiro; - atribuída, caso permaneçam no país de acolhimento, a pensão mínima, desde que a soma das várias pensões seja inferior ao valor considerado como o limiar da pobreza, no respectivo país.
O Encontro da CDU salienta o facto de os dois actos eleitorais em que os portugueses da diáspora vão participar se realizarem em tempos muito próximos – para o PE a 7 de Junho e para a AR provavelmente em Setembro – exigindo por isso a concepção e construção de uma campanha activa, baseada no grande empenhamento de todos os activistas da CDU, assente no contacto directo, na informação, no esclarecimento e no convencimento dos eleitores.
Uma campanha eleitoral que responda às exigências dos dois actos eleitorais que ocorrerão com um intervalo de 3 meses. Esta campanha tem de ser construída de forma integrada para assegurar a convergência de cada um desses actos na concretização do objectivo geral do reforço da influência da CDU, alicerçada no tratamento dos problemas concretos do país e dos portugueses que trabalham e vivem no estrangeiro.
O Encontro da CDU destaca, por isso, a importância das eleições para o Parlamento Europeu cujo resultado, por ser a primeira eleição, deverá potenciar o alargamento da CDU e contribuir para uma viragem na vida política nacional e na Europa.
Uma activa campanha será um importante factor capaz de romper preconceitos, sentimentos de desânimo, conformismo e tendências abstencionistas que anos de políticas de direita instalaram em muitos portugueses. Uma campanha marcada pela confiança alicerçada no património de trabalho e de acção da CDU em defesa dos interesses de Portugal e dos portugueses e ancorada nas propostas que a CDU apresenta às comunidades portuguesas.
O Encontro da CDU dirige-se a todos os que reconhecem na CDU a força indispensável para uma nova política, para que contribuam para alargar o esclarecimento e ampliar, na consciência de mais e mais portugueses, a convicção de que é no reforço da CDU que está a garantia de abrir um caminho de esperança e de uma vida melhor para os portugueses que vivem dentro e fora do País.

Bobigny/França, 29 de Março de 2009

sexta-feira, março 27, 2009

terça-feira, março 24, 2009

sexta-feira, março 20, 2009

A ORIGEM DO CONCEITO

O "choque de civilizações", expressão surgida pela primeira vez em 1990 num artigo do especialista do Médio Oriente, Bernard Lewis, generosamente intitulado "As raízes de raiva muçulmana", estabelece a ideia de que o islão não tem nada bom e que a amargura que isso causa entre os muçulmanos transforma-se em raiva contra o Ocidente. Não obstante, a vitória está garantida, assim como a "libanização" do Médio Oriente e o fortalecimento de Israel.

Bernard Lewis, que hoje tem 88 anos, nasceu no Reino Unido e especializou-se como jurista e perito em islamismo. Durante o Segunda Guerra Mundial, trabalhou nas agências de inteligência militar e no gabinete para os assuntos árabes do Ministério Britânico de Relações Exteriores. Nos anos sessenta tornou-se um importante perito consultado pelo Real Instituto dos Negócios Internacionais, onde foi considerado um excelente especialista em intervenção humanitária britânica no império otomano e um dos últimos defensores do império britânico.

Patrocinado pela CIA, ele participou no Congresso para Liberdade Cultural, onde lhe foi confiado o projecto de escrever um livro intitulado "O Médio Oriente e o Ocidente". Em 1974, mudou-se para os Estados Unidos. Tornou-se professor em Princeton e adoptou a cidadania americana. Nessa altura era conselheiro de Zbigniew Brzezinski, que por sua vez, era conselheiro de Segurança Nacional sob a administração do presidente Carter. Em conjunto, conceberam a base teórica do "arco de instabilidade" e planearam a desestabilização do governo comunista do Afeganistão.

Em França, Bernard Lewis era membro da Fundação Saint-Simon de acompanhamento da NATO, para a qual produziu em 1993 um folheto intitulado "Islão e democracia", cuja publicação originou uma entrevista para o jornal francês Le Monde. Naquela entrevista, ele conseguiu negar o genocídio cometido contra os arménios, tendo-lhe sido por esse motivo movido um processo judicial.

No entanto, o conceito de "choque de civilizações" foi evoluindo rapidamente; do discurso neocolonial baseado na tónica da supremacia branca, para a descrição de uma confrontação mundial cujo resultado seria incerto. Este novo significado deveu-se ao professor Samuel Huntington que, contrariamente ao que se possa pensar, não foi um perito islâmico, mas sim um estratega. Huntington desenvolve esta teoria em dois artigos — "O choque de civilizações?" e "O Ocidente único, não universal" -- e um livro originalmente intitulado "O choque de civilizações e o refazer da Ordem Mundial".

Já não se trata de combater os muçulmanos, mas sim de um combate prévio antes do combate com o mundo chinês. Como no mito da fundação de Roma, os Estados Unidos têm de eliminar os seus adversários um por um para alcançar a vitória final

Samuel Huntington é um dos intelectuais mais importantes dos tempos actuais, não porque o seu trabalho seja rigoroso e brilhante, mas sim porque constituiu a fundação ideológica do fascismo moderno.

No seu primeiro livro intitulado "O Soldado e o Estado", publicado em 1957, ele tenta provar que existe uma instituição militar ideologicamente unida, enquanto as instituições civis são politicamente divididas. Assim, ele desenvolve o conceito de uma sociedade na qual seriam eliminados os regulamentos comerciais, colocando o poder político nas mãos das multinacionais, e sob a tutela da Guarda Pretoriana.

Em 1968, ele publicou "A Ordem política nas sociedades em transformação", uma tese onde afirma que os regimes autoritários são os únicos capazes de modernizar os países do Terceiro Mundo. Secretamente, ele participou na criação do grupo de reflexão (think tank) que submeteu um relatório ao candidato presidencial, Richard Nixon, onde se proponha o reforço das acções secretas da CIA.

Em 1969-1970, Henry Kissinger, que tinha uma propensão por acções secretas, exerceu influência para ele ser designado como membro de um grupo de trabalho, especificamente nomeado pelo presidente, para o Desenvolvimento Internacional. Huntington defendia a necessidade de um jogo dialéctico entre o Departamento de Estado e as multinacionais; o primeiro teria que exercer pressão sobre os países em desenvolvimento, no sentido de adoptarem legislações liberais e abandonarem as nacionalizações, enquanto as multinacionais deveriam transferir para o Departamento de Estado o seu conhecimento sobre os países onde desenvolviam as suas actividades.

Ele torna-se então membro do Centro Wilson e cria a revista Foreign Policy. Em 1974, Henry Kissinger designou-o membro do Comitê das Relações Latino-Americanas. Huntington participou activamente na entronização de Augusto Pinochet no Chile e de Jorge Rafael Videla na Argentina. Ali, tentou pela primeira vez o seu modelo social, e demonstrou que uma economia não-regulada seria compatível com uma ditadura militar.

Ao mesmo tempo, o seu amigo Zbigniew Brzezinski apresentou-o a um círculo privado: a Comissão Trilateral. Uma vez integrado nesta Comissão, ele elaborou um relatório intitulado "A Crise da Democracia", onde promove uma sociedade mais elitista que limitaria o acesso às universidades e à liberdade de imprensa.

Quando Jimmy Carter se libertou dos membros das administrações Nixon e Ford, Brzezinski, agora consultor da Segurança Nacional, ajudou o amigo Huntington, que na altura pretendia permanecer na Casa Branca, com o objectivo de desempenhar o papel de coordenador do Conselho de Segurança Nacional.

Durante este período, Huntington encetou uma colaboração activa com Bernard Lewis e concebeu a necessidade prévia de dominação das zonas produtoras de petróleo e politicamente instáveis, antes de um eventual ataque à China comunista. Embora isto não fosse, para já, um "choque de civilizações", na realidade era bastante semelhante.

Mas o professor Samuel Huntington foi forçado a enfrentar um escândalo incómodo. De acordo com notícias correntes, a CIA estava a pagar-lhe para publicar artigos em revistas universitárias, justificando as acções secretas desenvolvidas por aquela agencia, com o objectivo de assegurar a ordem em países onde um ditador amigo tivesse desaparecido ou falecido repentinamente. Quando o escândalo foi esquecido, Frank Carlucci designou-o como membro do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Integrada do Departamento de Defesa para a Estratégia a Longo Prazo.

O seu relatório, serviu como justificação para o programa "Guerra das Estrelas". Hoje, o professor Huntington dirige a Casa da Liberdade, uma associação anticomunista encabeçada pelo anterior director da CIA, James Woolsey.

quarta-feira, março 18, 2009

Na luta.



A revolução é hoje!

terça-feira, março 17, 2009

sexta-feira, março 13, 2009

Mais de 200.000 exigem uma vida melhor



"Mais de 200.000, número superior à ultima manifestação de Junho de 2008, trabalhadores de todo o país, manifestaram-se em Lisboa, num acção organizada pela CGTP-IN, pela exigência de melhores condições de vida. O PCP esteve presente nesta manifestação com uma delegação, que integrou Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP, Jaime Toga, Francisco Lopes e Paulo Raimundo, da Comissão Política, Ilda Figueiredo e Patrícia Machado, do Comité Central."
A revolução é hoje!

Todos à rua, antes que seja tarde demais!

Hoje!



terça-feira, março 10, 2009

O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, de Engels a Desmond Morris

"Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida em que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfato muito mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do tacto, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através do trabalho.

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.

Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos — que na história da Terra têm uma importância menor que um segundo na vida de um homem — antes que a sociedade humana surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores. Mas, afinal, surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições geográficas ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhe oferecia, se exceptuarmos a acção inconsciente da manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da população simiesca tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de seus animais mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de alimentos; além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra montesa que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se, deixaram nuas todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos animais desempenha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos registrados pela história, assim como pelo dos selvagens actuais mais primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que pudesse manifestar-se activamente a vida propriamente animal. E quanto mais o homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os animais. Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física e independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência da dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração. Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o facto de que, em uma ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma questão que não tem hoje para nós a menor importância.

O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se directamente para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em examinar minuciosamente suas conseqüências.

O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a superfície habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por iniciativa própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais domésticos e os insectos parasitas — não o conseguiram por si, mas unicamente acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou novas exigências, ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo para proteger-se do frio e da humidade. Surgiram assim novas esferas de trabalho, e com elas novas actividades, que afastaram ainda mais o homem dos animais."

(Engels)


"Quando se contam histórias, comete-se muitas vezes o abuso de separar as diferentes partes, como se cada progresso conduzisse a outro, mas essa atitude é completamente falsa e enganadora. Os primeiros macacos terrestres possuíam já grandes cérebros de alta qualidade. Tinham bons olhos e mãos capazes de agarrar eficientemente as presas. Pelo fato de serem primatas, tinham também, inevitavelmente, um certo grau de organização social.
À medida que as circunstâncias os obrigavam a aperfeiçoar-se na matança das presas, começaram a ocorrer modificações vitais: tornaram-se mais eretos — correndo melhor e mais rapidamente; as mãos libertaram-se das atividades locomotoras — permitindo empunhar armas com mais força e eficácia; os cérebros tornaram-se mais complexos — tomando decisões mais rápidas e inteligentes. Tudo isso não se sucedeu segundo uma ordem bem estabelecida; os vários progressos foram-se acentuando ao mesmo tempo, com pequeninos melhoramentos de uma ou outra qualidade, cada um dos quais estimulava outros aperfeiçoamentos. A pouco e pouco ia-se formando um macaco caçador, um macaco assassino.
Pode-se objetar que essa evolução poderia ter conduzido a um progresso menos drástico, originando um assassino mais parecido com o cão ou com o gato, uma espécie de macaco-gato ou de macaco-cão, através de um processo mais simples de desenvolvimento dos dentes e das unhas em forma de ar¬mas selvagens, como as fauces e as garras. Mas isso teria colocado o macaco terrestre primitivo em competição direta com os gatos e cães que já existiam, e que eram assassinos muito especializados. Corresponderia a uma competição baseada nas condições já existentes, e o resultado não poderia deixar de ser desastroso para os primatas em questão. (Ao que se sabe, essa hipótese pode mesmo ter-se dado com tão maus resultados que nem sequer teria deixado vestígio.) Em vez disso, fez-se uma tentativa completamente nova, em que se empregaram armas artificiais em lugar de armas naturais, o que deu resultado.
Seguiu-se a passagem da fase de utilização de instrumentos à do respectivo fabrico, o mesmo tempo que se aperfeiçoaram as técnicas de caça, em relação tanto às armas quanto à cooperação social.
Os macacos caçadores dedicavam-se à caça coletiva e, à medida que aperfeiçoavam as respectivas técnicas, aperfeiçoavam igualmente os métodos de organização social.
Quando os lobos caçam, dispersam-se depois do ataque, mas o macaco caçador já tinha um cérebro muito mais desenvolvido que o do lobo, pelo que podia utilizá-lo em problemas complicados, como a comunicação de grupo e a cooperação. Podia assim atrever-se a manobras cada vez mais complexas. O cérebro continuava a crescer.
Essencialmente, havia um grupo de machos caçadores. As fêmeas estavam já muito ocupadas em criar os filhos para poderem participar ativamente na perseguição e na captura das presas.
À medida que aumentava a complexidade da caça e as expedições se tornavam mais longas, o macaco caçador teve de abandonar os caminhos sinuosos e nomadas dos seus antepassados. Era necessário ter uma base fixa, um local para onde trouxesse os despojos, onde se mantivessem as fêmeas e as crias e onde pudessem partilhar a comida.
Como veremos adiante, esse passo teve uma influência profunda em muitos aspectos do comportamento dos macacos pelados, mesmo dos mais requintados que hoje existem.
Desse modo, o macaco caçador tornou-se um macaco territorial. Todas as suas normas sexuais, familiares e sociais começaram a mudar. A antiga forma de viver, vagabunda de apanhar frutos aqui e acolá, foi desaparecendo pouco a pouco. O jardim do Paraíso tinha, de fato, ficado para trás. Daqui para o futuro, tratava-se de um macaco com responsabilidade. Começou a preocupar-se com os equivalentes pré-históricos das máquinas de lavar e dos frigoríficos. Começou a desenvolver o conforto caseiro — fogo, despensa, abrigos artificiais.
Mas temos de ficar agora por aqui, senão afastamo-nos do domínio da biologia e embrenhamo-nos no da cultura. A base biológica de todo esse progresso reside no desenvolvimento de um cérebro suficientemente grande e complexo que permitiu que o macaco caçador evoluísse. Mas a forma exata assumida por esse progresso já não depende de uma orientação genética específica. O macaco da floresta, que se tornou macaco terrestre, que se tornou macaco caçador, que se tornou macaco territorial, acabou por se tornar macaco culto e devemos parar temporariamente aqui.
Vale a pena insistir mais uma vez em que não nos interessam neste livro as explosões culturais maciças que se seguiram, das quais o macaco pelado se sente hoje tão orgulhoso — a progressão dramática que o conduziu, apenas em meio milhão de anos, da fase em que começou a fazer fogo ate a construção de um foguete espacial. É, sem dúvida, uma história emocionante, mas o macaco pelado pode deslumbrar-se a tal ponto que se arrisca a esquecer que por baixo da sua brilhantíssima aparência continua a ser em muitos aspectos, um primata. (Um macaco é um macaco, um velhaco é um velhaco, quer se vistam de seda ou de trapo...) Até o próprio macaco espacial precisa urinar.
Só poderemos adquirir uma compreensão objetiva e equilibrada da nossa extraordinária existência se lançarmos um olhar duro sobre as nossas origens e estudarmos os aspectos biológicos do actual comportamento da nossa espécie.
Se aceitamos a história da nossa evolução tal como atrás foi resumida, há um facto que se impõe com clareza: desenvolvemo-nos essencialmente como primatas de rapina. Isso torna-nos únicos entre os macacos e símios existentes, mas conhecem-se transformações semelhantes em outros grupos zoológicos. O panda gigante, por exemplo, é um caso típico do processo inverso. Enquanto passamos de vegetarianos a carnívoros, o panda passou de carnívoro a vegetariano e em muitos aspectos, é uma criatura tão extraordinária e única como nós. Isso se explica porque uma grande transformação desse gênero produz um animal com dupla personalidade. Uma vez dobrado o limiar, assume-se o novo papel com grande energia evolutiva — tão grande, que se conservam algumas das características anteriores. Ainda não houve tempo para se libertar de todos os velhos traços, mas apressa-se a adquirir novas características."

(Desmond Morris)

A revolução é hoje!

Sou!



A revolução é hoje!

domingo, março 08, 2009

2009

"(...) Lênin se ergueu bruscamente, bateu na mesa e deu alguns passos pela sala.
«A revolução exige concentração, tensão das forças, tanto das massas, como dos indivíduos. Não pode tolerar estados orgíacos, do tipo peculiar às heroínas e aos heróis decadentes de D'Annunzio. Os excessos na vida sexual são sinal de decadência burguesa. O proletariado é uma classe em ascensão. Não necessita inebriar-se, atordoar-se, excitar-se. Não precisa embriagar-se nem com excessos sexuais, nem com álcool. Não deve olvidar, e não olvidará a baixeza, a lama e a barbárie do capitalismo. Haure seus maiores impulsos de luta na situação de sua classe e no ideal comunista. O que lhe é necessário é clareza e sempre clareza. Assim, repito, nada de fraqueza, nada de desperdício ou destruição de forças. Dominar-se, disciplinar os próprios atos não é escravidão, e é igualmente necessário no amor.
Mas, desculpai-me, Clara, afastei-me muito do ponto de partida de nossa conversação. Por que não me chamaste à ordem? Deixei-me levar pelo ardor. O futuro de nessa juventude me preocupa muito. A juventude é uma parte da revolução. Ora, se as influências nocivas da sociedade burguesa começam a atingir até mesmo o mundo da revolução, como as raízes amplamente ramificadas de algumas ervas, é melhor reagir em tempo. Tanto mais quanto essas questões também dizem respeito ao problema feminino.» (...)"

sexta-feira, março 06, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA VI

6. Um empenhamento cívico combativo pela humanização da humanidade.
É mais do que tempo de concluir esta já longa excursão pelos testemunhos do pensar de Bento Caraça — em que nem sequer é seguro que da função de «cicerone» que avoquei me haja desempenhado à altura da riqueza subtil e da profundidade real do muito que nele há para mostrar ou dar a ver com semente de futuro.
Entendo, não obstante, que o percurso que empreendemos — em cada estação em que pousámos, e no ritmo que enlaça os diferentes momentos considerados — serviu para documentar e robustecer a ideia geratriz de um arreigado e combativo empenhamento cívico (pesoalmente interpretado, mas com um desígnio individual e colectivo) pela humanização da humanidade, obreira da, e responsável pela, sua destinação mundana.
Caraça, nos seus escassos anos de vida, preencheu por inteiro e intensamente este itinerário: na teorização de alto calibre que nos legou, no património vasto de instituições a que deu corpo e fôlego, na militância pública e clandestina (nas fileiras do Partido Comunista Português) que com denodo e coragem desenvolveu.
Bento Caraça, lutador destacado em frentes várias no difícil combate anti-fascista, revela uma consciência nítida (e praticante) do papel e do valor da negatividade (e, portanto, da oposição) na dialéctica real da construção histórica. Como ele próprio, com desassombro, afirma, em formulação que comporta vitualidades de modelo extensível a outros tópicos: «Toda a forma de humanismo vale tanto pelo que é como [por] aquilo contra que é».
Esquematizando, sem todavia incorrer em excessos redutores de simplificação:
Contra a treva requintada (requentada) da ignorância cediça, em obediência à qual «há sempre gente para quem as coisas mais obscuras são a própria claridade>> — o manejo paciente e rigoroso da «lâmina aguda da razão», como instrumento de demanda daquela luminosidade emancipadora que permite adentramento e orientação pelas silvas emaranhadas do desconhecido (mesmo que próximo).
Contra a bárbara apoteose, sanguinolenta e negocista, do belicismo de quantos «exaltam a guerra (em que só os outros morrem)» — a promoção solidariamente internacionalista e democrática do «espírito de pacifismo», que todavia não hesita em alinhar-se para a refrega na «trincheira da luta pela Humanidade».
Contra a (des)ordem da dominação capitalista reinante, que, expirado o seu prazo histórico de validade, tritura e se ri dos ideais políticos de cidadania sobre que avançou e se ergueu, para desenfrear tão-só os expansivos apetites exploradores do «Deus-Produção» — «o fortalecimento da justiça sobre a terra», mediante a introdução revolucionária das correspondentes alterações de estrutura na orgânica económica e social.
Contra o conformismo derrotista (porque objectivamente derrotado) ante o progresso, mas obstinado e renitente, dos que teimam em conservar, a qualquer preço, o que se revelou já insustentável num ciclo mais longo — a confiança social trabalhada (e trabalhosa) no poder material da transformação que, constituindo embora «lei da vida», nem por isso dispensa por um momento os humanos de a tomarem a seu cargo e de lhe darem caminho, superando sucessivos obstáculos.
Em toda esta concepção articuladamente global de Bento Caraça, à economia corresponde um patamar estrutural que comanda o quadro fundamental, e condiciona a dinâmica, dos relacionamentos sociais na produção e reprodução do seu viver.
«Base de inserção» de todos os ramos da actividade, com impacte e ressonância, inclusivamente, na marcha do desenvolvimento de operações teoréticas — «o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar», até para que se possa, com prospecto emancipador, trilhar «a senda da cultura», posto que «o desenvolvimento harmónico da personalidade é incompatível com a sujeição a condições materiais precárias».
Dito isto, e assentes estes alicerces (que importa não olvidar), encontramo-nos, no entanto, bem longe de qualquer apologia ou propugnação do «economicismo» — como variante (aquietadamente atentista ou antecipadamente triunfal) de um mecanicismo simplista e fantasmático que evacua dos processos históricos a condicionada, mas decisiva, intervenção das massas sociais em movimento, ingredientes activos elas próprias do devir das realidades.
Bento de Jesus Caraça manifesta-se particularmente claro e contundente a este respeito, recusando por completo subscrever quaisquer laivos de exaltação gloriosa e majestática do «fatalismo em história», que apelida sem rebuços de «um reles biombo de papel atrás do qual se abrigam, ou julgam abrigar-se, os ineptos e os preguiçosos»:
«Não há fatalidade em história», declara frontalmente com firmeza serena, mas bem alicerçada, «o que acontecerá... é sempre determinado pelo jogo dos elementos em presença. Em cada momento, o homem age sobre o meio que o cerca e o meio age sobre o homem — o que sai dessa acção recíproca é o que ela determinar e não o que, em obediência a um obscuro misticismo fatalista, se considera como aquilo que tem de ser. Aquilo que tem de ser não é ainda, e, como tal, pode vir a não ser.».
Removido o expediente indolente da automática linearidade ascensional, resulta, assim, que não estamos igualmente em presença de uma lógica de oscilação periódica (em que a mudança é repetição de alternâncias cíclicas, que à vez se vão sucedendo, com alguns estádios de transição de permeio), mas que nos confronta e envolve um processo, aberto e em construção, tecido e entretecido de contraditoriedade, onde a criação em acto retém adquiridos e pro-duz novação: «Não há movimento pendular, há movimento dialéctico» em que as oposições devenientes se resolvem «não num retorno estagnante a qualquer forma passada, mas sim numa síntese que é um estado superior em que alguma coisa se criou».
Daí, por um lado, o lugar estruturante das revoluções (que não se abatem do céu por decreto divino, nem se elevam da terra por mera intensificação das vontades) e, por outro, a necessidade humana de agir — no e do interior de condições determinadas, que importa conhecer com precisão rigorosa para transformar adequadamente.
Quando «os interesses dos grupos, castas ou classes, detentores do poder, ou duma sua parcela» se encontram «em franco antagonismo com os interesses gerais», verificam-se «épocas de comoção dos fundamentos da sociedade», em que os novos protagonistas sociais emergem, adquirindo um peso determinante de liderança.
Ao tempo que corria e com o andamento que a história levava (num quadro agudizado de conflitualidades, repercutindo-se assimetricamente no interior dos diferentes países), a arrumação e correlação das forças sociais em dinâmica presença ganhava contornos tendenciais nítidos; não por excesso esperançado de visionarismo anelante, mas por consideração atenta de possibilidades reais em movimento efectivo: «a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente.».
É dentro desta moldura movente que ganha inadiável expressão de urgência a formação de um colectivo, não ao jeito de um arrebanhamento de entusiastas deslumbrados, mas, com exigência e qualidade, constituído por personalidades fortes e consistentes, onde — dissolvendo-se abstractas antinomias entre «indivíduos» e «massas» — se faça prevalecer, enraízada e conscientemente, os verdadeiros «interesses gerais» sobre mesquinhos e persistentes «interesses de classe».
Sem antropomorfismos redutores e contraproducentes (onde o pesadume da retórica suplanta em muito o seu efeito), mas com um porfiado trabalho de cultivo da Natureza e da socialidade, segundo rumos de afirmação consolidada da razão e da justiça (em processo de que os intelectuais não hão-de ser afastados, nem se podem demitir); sobremaneira sem mitificações alienantes e mistificatórias do que realmente em causa está — a mensagem que se desprende, e toma voo, é grandiosa e inequívoca nos seus propósitos de ampla respiração e alcance: «expulsai os falsos deuses; valorizai o homem, acabando com a projecção abusiva e criminosa do indivíduo sobre o colectivo; humanizai a sociedade!».
Chega, deste modo, à luz da publicidade comunicante, e do desafio prático que a prolonga, a resplandecente face solidária do humanismo militante, revolucionário, de Bento de Jesus Caraça.
Liberto das peias e dos tiques (em larga medida, «modernos») de uma circunscrição à esfera (burguesamente confortável) da intimidade individualista, combativo no terreno por generosas causas de humanidade, é para «um humanismo do homem pelo grupo» que se aponta — em que «a realização total do homem só pode conseguir-se através da sua comunhão com a sociedade em todo o complexo da sua organização», e no qual se apela decididamente «ao colectivo como agente regenerador da sociedade, cadinho de purificação de velhos valores e fonte de novas razões de viver».
Formando «homens novos», capazes de fazer do mundo «uma sociedade de homens livres», é do mesmo passo o cumprir de uma destinação de humanidade que, em horizonte (a trabalhar), se perfila: «a realização da obra que nos cabe» é «uma grande construção colectiva» — «a Cidade Nova, o grande templo do trabalho criador, onde seja abolida a miséria e atenuado o sofrimento humano».
Ao cabo desta exposição fastidiosa — não decerto pelos conteúdos que pretendeu evocar, mas pela desastrada forma de mostração em que os acabou por verter —, sensibilidades pós-amodernadas haverá que ao pensamento de Bento de Jesus Caraça apenas se dignarão conferir o estatuto de «obsolescido» monumento a reverenciar, como «piedoso» testemunho museológico de uma época e de anseios irremediavelmente revolutos. Enfim, «cousa» e «coita» de recauchutados próceres delicados da «razão debilitada», do inultrapassável «fragmentário», da «leveza frágil» do ser...
E, no entanto, reiteradas opinações e comportamentos desta índole — só na aparência, paradoxalmente — não fazem mais do que vir confirmar, num peculiar registo hodierno, a actualidade persistente da ideia geratriz que anima o generoso percurso de Bento Caraça.
Todos estamos cientes — e Bento de Jesus Caraça para essa eventualidade não deixou de nos precaver e alertar — de que o mundo se transformou, e de que transformadas são hoje as condições que continuam a reclamar transformação.
Mesmo em «períodos de tranquilidade», recordava Caraça, «as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso». Subsiste, na verdade e sem impenetráveis mistérios, minando a forma fenoménica do acontecer (qualquer que seja a figura por que se manifesta), um pulsar contraditório das realidades que não pode ser esquecido nem menosprezado, sob pena de desencantadoras surpresas.
Por outra parte, neste contexto prosseguido de uma história que não fechou as portas para descanso terminal, nem confirma apregoadas e sucessivas certidões de óbito (que alguns teimam inflamadamente em passar-lhe), persiste — renovada e responsabilizadora — a tarefa, individual e colectiva, de inscrever, como sinal da qualidade que somos, o cunho da nossa humanidade no corpo deveniente do ser.
A busca de refúgio na «bruma da utopia» pode induzir em espíritos predipostos, a par de imaginosas elocubrações futurantes sobre fins a atingir sem o correspondente cuidado prático pelos meios para lá chegar, uma compensatória ilusão de movimento.
A acomodação rasteira ao existente — lamentável «espectáculo degradante da renúncia do povo em si próprio» — proporciona decerto, aos mais habilidosos, navegações de curta cabotagem e, aos que a tal postura se podem entregar, talvez despreocupadas aquietações imediatas.
O capitulacionismo desistencial, mesmo quando elegantemente estilizado, era um triste velho conhecido de Bento Caraça. Daí as cáusticas palavras que lhe concede: «Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem ».
Por custosas e inquietantes que se pressintam as alternativas encaráveis, nas derivas de errância a que acabamos de aludir não se esgota, porém, a panóplia de opções que ao viver se oferece.
Outros rumos, outras rotas, outros desafios e combates existem, que suscitam de nós todos atenção, empenho, e compromisso — porque a existência, por mais dolorosa e hostil que se apresente, nunca está por inteiro encerrada: sempre adiante de si pro-jecta leques de possibilidades reais a explorar e materializar segundo desígnios de avanço na senda enriquecida de humanização.
Nesta linha de sageza prática que em todo o tempo se questiona e busca, sem dúvida, merece radicalização de sondagem, e mantém validade alargada, um comentário de Bento Caraça, originalmente ligado à perplexidade sentida perante a sucessão de um conjunto de problemas matemáticos: «Estamos na situação do caminheiro que, após longa jornada, vê subitamente alongar-se o caminho com uma volta inesperada numa dobra do terreno.».
Saibamos nós, tentativos obreiros em construção de concreta cidadania humana, íntegra e integral, estar à altura, pela teoria e na prática, das caminhadas dificultosas que os dias de hoje, cada vez mais, reclamam.

Muito obrigado pela paciência da vossa atenção.

Lisboa, Março-Abril de 2001

DE BENTO DE JESUS CARAÇA LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO V

5. Integralidade e integridade da cultura.
A reflexão — e a actividade organizativa — de Bento de Jesus Caraça em torno da educação, da arte, da cultura, mergulha as suas raízes numa funda compreensão da dialéctica da criatividade, como eixo central de uma ocupação com o viver e a sua destinação.
Trata-se de um exercício inescapavelmente corrente (em si, nada excepcional) que, passando embora muitas vezes despercebido (com as consequências perniciosas para a sua orientação, infelizmente conhecidas), aos seres humanos cumpre realizar e protagonizar, em registo simultaneamente pessoal e colectivo.
Quando repetidamente se insiste em que «onde não há necessidade não há criação», apenas se pretende significar que esta última nunca se dá por ela própria, ao jeito de diletância ornamental ou de suplemento dispensável; antes se determina e ganha estação como proposta positiva de construção num ambiente de carências sentidas, de problemas desafiantes, de aspirações passíveis de materialização entrevista.
Percebe-se, assim, que «toda a vida humana á uma lenta criação, fruto de intervenções do indivíduo e do seu meio, do seu contexto». No entanto, este movimento não é apenas de simplificada parada e resposta; a sua estrutura e decurso revelam-se complexos, e ele próprio rasga, por seu turno, vectores de futuro: «de cada vez que se faz uma criação, abrem-se naturalmente perspectivas».
É neste âmbito de fluência que se abre, então, a clareira (a trabalhar) de uma decidida e decisiva intervenção, intensiva e extensiva, no campo da democratização cultural efectiva.

Estas considerações, por abstractas ou abstrusas que pareçam, na forma que revestem e até no teor que ostentam, possuem, porém, em próprio e em concreto, um tempo e um lugar determinados. Bento Caraça está dessa circunstância plenamente ciente, e é para ela que cuida de alertar, de preparar, de mobilizar.
As vicissitudes mesmas da história — não cegamente desencadeadas por forças sem nome, nem providencialmente dispostas por numinosos poderes, mas que gerações sucessivas moldaram e foram lavrando, dentro e a partir de condições determinadas — conduziram a uma situação peculiar e extrema em que «agora, é toda a humanidade que é chamada a resolver o seu próprio problema, está tudo em causa, há que refazer tudo, e por isso o nosso tempo é o mais perturbado e inquieto de todos os tempos que o homem tem vivido. A ocasião é única também para realizar finalmente um grande passo nessa síntese grandiosa do indivíduo e da colectividade .».
Sem um atento e reflexivo estado de vigília com acúmen crítico cultivado, sem as luzes de um esclarecimento alargado e empenhado, susceptível de enriquecer o conteúdo e de modelar a prospectiva das práticas sociais requeridas — não é possível, portanto, alcançar a massa crítica indispensável aos cometimentos societais que a especificidade do tempo suscita e estimula: «só pela meditação se pode formar o tipo de homem que há-de enfrentar e resolver os problemas que estão aí diante de nós».
Nas condições imperantes no salazarento Portugal da altura — onde desde o raquitismo político artrítico até à vivência tolhida das relações sociais elementares — grassava, respaldado em musculados tremores, um surdo temor e uma desconfiança endémica, o caminho (espinhoso) a prosseguir levanta de pronto uma tarefa incontornável: «a primeira coisa a fazer para sermos gente é extrair o medo dos corações dos portugueses, fazendo deles homens generosos e fortes, libertos da grilheta da mais aviltante das escravidões».
A esta luz de uma coragem e iniciativa que se pretende reacordar e reconquistar, «o património cultural comum da humanidade» adquire uma relevância focal para todo um programa consistente a desenvolver, no sentido de o trazer na realidade à consciência de todos, no quadro de uma apropriação efectiva e enriquecedora que o converta em potencial ou cabedal a empregar no delineamento de uma marcha de dignificação partilhada.
A cultura devém, assim, «o conjunto de todas as aquisições gerais — materiais, intelectuais, morais e artísticas — postas à disposição do homem como seu património comum. E porque esse património é obra colectiva de toda a humanidade produtora, ele está, ou deve estar, aberto a todo o homem para lhe favorecer, por sua vez, o desenvolvimento, isto é, aumentar as suas possibilidades».
Integralidade multiforme de adquiridos e integridade socializada de acesso fundam, portanto, este emergir (livre e libertador) da dimensão cultural como solo partilhado e trabalhado de uma configuração do mundo que se prolonga, além do domínio do existente, em direcção a uma exploração transformadora do real, que criticamente toma a cargo (na teoria e pela prática) o leque de possíveis que adiante de si pro-jecta.
Havendo, de um ponto de vista nocional, lugar ao estabelecimento de uma discriminação (ponderável e luminosa) entre «civilização» e «cultura, entre «ser culto» e «saber muitas coisas», entre o «elitista» e o «popular», entre «especialismo» e «divulgação» — acontece que o determinante, em qualquer caso, se encontra, não na excogitação multiplicante de «distinções artificiosas», segundo o campo e ângulo de análise a considerar, mas na descoberta (accionalmente vivificada e densificada) de uma unidade de género: a «cultura humana».
Daí o imperativo — ético-político, educativo, e, no fundo, radicalmente humano — de laborar, sem esmorecimentos e com confiança, no sentido da «extensão progressiva do património cultural comum», já que é também a própria cultura (designadamente, na acepção recolhida na nota 100) que se desenha e perfila como indicador decisivo, para um povo, do «grau de qualidade da civilização» que ostenta.
Nunca perdendo de vista — e convocando mesmo para os meandros da argumentação expendida — a evolução económica e social dos próprios diferentes aparelhos de formação que se foram sucedendo ao longo da história, Bento Caraça pronuncia-se, então, com meridiana clareza «condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite», em que «o dinheiro» devém «o elemento fundamental da selecção».
Reconhecendo embora a dedicada e legítima função de «grupos especializados» no «cultivo e progresso da ciência», a abordagem estratégica para esta temática na sua globalidade tem, no entanto, de assumir um carácter totalmente diferente, quando o que verdadeiramente se encontra em causa é o acesso e disposição de uma plataforma ampla de saberes com forte impacte na orientação e condução da vida: «o que não pode nem deve ser monopólio de uma elite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais».
Retoma-se, assim, em termos alargados e em condições transformadas, um dos pilares mestres do programa emancipador da modernidade, segundo um vector radicalizante da democratização e do enriquecimento dos campos e conteúdos por que se manifesta: a perfectibilidade do género humano como problema e tarefa.
Posto que — removidas as tentações de fixismo ou de inelutável repetição do mesmo, que visam justificar e perpetuar estados de coisas instalados (assim consagrados como «naturais» ou inultrapassáveis) — «o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável», impõe-se, em conformidade, «promover a cultura de todos», uma vez que esta «é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante».
Neste horizonte de mobilização e de luta, assomam, designadamente, como traços constitutivos da cultura a incentivar: devolver a cada homem «a consciência integral da sua própria dignidade»; proporcionar e preencher activamente um espaço de liberdade, entendida como «o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais»; fomentar a eclosão e disseminação do «espírito de solidariedade», apontado à «formação da pátria humana» e à «fraternidade real dos povos».
Em termos de integridade cidadã, a cultura representa, assim, «um direito inerente ao homem» (e não «um favor, mais ou menos disfarçado, da administração pública») que, por conseguinte, tem que ser objecto de diligente «extensão» e «democratização».
Em termos de integralidade no seu teor, a cultura tem de abrir-se no espectro de interesses que incorpora, não podendo deixar de fora do seu cultivo e compreensão aspectos — tradicionalmente desconsiderados ou menos prezados, em virtude de antigas estratificações sociais modificadamente perdurantes — de natureza prática e de inserção comunitária.
É neste marco de alongado alcance, e carregando toda esta fundamentação histórico-doutrinária, que surgem as conhecidas reivindicações estruturantes: da igualdade perante a Escola («uma só condição, uma só dignidade, uma só escola»); da escola única, como «etapa histórica», susceptível de materializar «uma grande aspiração para a luz», posto que «condição necessária de progresso da civilização»; da gratuitidade do ensino «em todos os seus graus: primário, secundário e superior».
Aproveito este último particular para pôr em destaque que a desmontagem a que Bento Caraça procede do argumentário (oscilante entre o imediatismo tosco e a sofisticação afectada) daqueles que elevam a voz ou brandem a pena contra o carácter gratuito do ensino público conserva ainda hoje, desafortunadamente, uma inultrapassada actualidade, pelo que a sua leitura e meditação vivamente se recomendam.
Percuciente se revela, do mesmo modo, a sua documentada análise crítica da «profunda contra-reforma» então em curso no que toca ao sistema educativo, bem como o seu conjunto pertinente de observações quanto à decrepitude e desajustamento social das Universidades (de onde, para cúmulo, as melhores cabeças, porque mais incómodas para o regime salazarista, eram expulsas), onde assentou arraiais uma rotineira ensinança «sebentarizada» (que ele castigadamente não poupa), e em cujos currículos de estudos gostaria de não ver cavar-se cada vez mais o abismo de incomunicação entre formações «literárias» e «científicas», desprezando-se assim, precisamente, a promoção de um núcleo cultural comum que deveria constituir o verdadeiro cimento da universalidade da sua missão.
É contra este estado de coisas (acinzentado, porque repressivo, estagnante, entorpecente) que Bento de Jesus Caraça enérgica e infatigavelmente se desdobra — pela palavra escrita e dita, bem como no plano organizativo — em actividades de denúncia e esclarecimento, mas também de construção socialmente empenhada.
A par de iniciativas académicas, de índole editorial e de investigação (como a Gazeta de Matemática ou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia), avulta certamente o lançamento da «Biblioteca Cosmos» (procurando dar corpo ao seu exigente sentido da «vulgarização científica»), ou a criação da Universidade Popular Portuguesa, cujo «fim exclusivo» era «contribuir para a educação geral do povo português», sem jamais esquecer a colaboração estreita dos sindicatos neste empreendimento cultural, tão ambicioso quanto necessário, já que, como critério que ele próprio estipula, a «utilidade» e «justificação» dessa Universidade dependem da «libertação espirtitual que der às massas trabalhadoras».
Em todo este buliçoso movimento — multifacético na sua expressão articulada — de demanda e fomento de emancipação, num quadro que deliberadamente não descura as potencialidades e eficácia da dimensão cultural, seja-me permitida uma referência breve (e quase esquemática, mas indicativa) ao papel da arte.
Segundo Bento Caraça, a arte, na diversidade dos seus géneros e orientações estéticas, inscreve-se desde os primórdios nesta milenar cadeia da cultura como um específico factor de grande peso — desde logo, numa quádruple vertente:
Porque nela se reflectem as condições e aspirações de um agregado social determinado; porque ela própria representa um indicador de civilização na marcha que imprime às suas produções; porque — em especial, quando não se afunda em «derivativo», «adormecimento» ou «evasão do real» — ela, «sem ser obra de propaganda, representa um admirável veículo de difusão de ideias e um potente aglutinador de sentimentos»; porque, genuinamente praticada e compartida, a ela advém uma nobre e gratificante função de «agente de comunhão humana».
Em períodos de amorfismo desmobilizador — «confusos, de fracas impulsões básicas» —, irrompe amiúde nos artistas uma perplexidade difusa que, bastas vezes, os conduz «a recolher-se ao formalismo», sucumbindo aos chamamentos da «pureza» e da «extra-contingência», que caracterizam as propaladas magnificações conhecidas da «arte pela arte».
Aliás, a este respeito, convém não esquecer que o domínio artístico constitui ele próprio um apetecido e privilegiado terreno para a luta ideológica (com reflexos em paragens que em muito o transcendem): «os campeões habituais da liberdade absoluta em arte são precisamente aqueles que a querem e procuram manter na mais odiosa das escravidões — a do conformismo aos interesses de classe [estabelecidamente dominantes]».
É certo que o artista — com frequência empurrado pela ditadura do gosto do público (ele próprio objecto de desvairadas manipulações, ora escanqueiradamente grosseiras, ora recatadamente subtis) — também não se encontra imune às tentações de fazer do seu produto ocasião e instrumento de escapismo, de demissão e fuga perante a desagradável «dureza» das realidades.
Em transes dessa natureza, importa recordar e dar a ver como aí, encapotadamente ou sob a bênção das mais «atendíveis» razões, é a alienação que espreita e se intromete, com o seu cortejo de efeitos devastadores: «o espírito, quando se evade, diminui-se, renuncia, aceita antecipadamente tutela estranha, a derrota de si mesmo».
Todavia, estes não são os únicos sendeiros que, nesta matéria, aos criadores se deparam. Ao artista comprometido com a realidade e com o seu povo, impregnado de uma compreensão dos problemas e tendências da sua época, confronta-o a missão (esteticamente humanizante) de «tomar consciência do movimento e passar à sua transmutação artística», alimentando um circuito (crítico-educativo) de fruição e de recepção, susceptível de «aproximar os homens» para o desempenho das suas tarefas de humanidade.
Vemos, por conseguinte, que, no pensamento de Bento de Jesus Caraça, «laicismo, interesse colectivo, democratização integral da cultura» desenham um carpinteiramento sustentado de formação apontada à entrada em cena do «homem novo, criador da cidade nova».

quinta-feira, março 05, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA IV

4. A ciência, numa dinâmica esclarecida de libertação.
É neste mapa ampliado de desígnios e de realizações que a ciência é chamada a desempenhar a sua mais nobre função emancipadora.
E, neste tabuleiro também, a abordagem dialéctica — desde logo, pela sensibilidade à retro-acção que desperta — volta a revelar-se imprescindível para penetrar, objectiva e subjectivamente, na natureza e nas implicações do empreendimento.
Com efeito, a demanda de ciência (quer como processo, quer como resultado) constitui, em si mesma, um exercício superior de «pensamento criador e livre»; mas, no entanto, ela própria começa por requerer, para dar-se (em regime normal de prossecução, e não num marco de excepcionalidade desgarrada), condições históricas e sociais de liberdade, que favoreçam o seu eclodir e afirmação.
A inteligibilidade conseguida, por seu turno, de património laboriosamente amealhado (um sabido que ciosamente se guarda e entesoura), converte-se, pro-activamente (sobremaneira num espaço de socialização alargada), em factor que potencia a própria liberdade, fortalecendo-a com a possibilidade de orientação no mundo a partir das luzes do saber.
Daí o papel incontornável, ainda que não simplificadamente automático, dos avanços da ciência — e também dos progressos das técnicas — para a edificação de um viver colectivo, partilhando em efectividade generalizada níveis elevados de «bem-estar» à altura das possibilidades proporcionadas pelo estádio de desenvolvimento do tempo, emancipado dos múltiplos jugos e cerceamentos ancestralmente herdados (e reproduzidos a benefício das camadas e estratos dominantes) que o têm afligido e entravado.
É assim que, no cumprimento cumulativo destes desideratos de crescimento e de libertação, do ponto de vista teorético e concepcional, a ciência se tem do mesmo passo que precaver contra a costumeira «rejeição do devir como base de uma explicação racional do mundo» e contra a ainda persistente remissão «do manual e do mecânico para fora do domínio da Cultura». Historicidade do ser socialmente mediado e transformação instrumental das realidades formam, deste modo, um complexo (uno) de articulações (múltiplas) que não pode, segundo uma ajustada medida crítica, deixar de ser tido em consideração.
É certo que, «com o avanço da técnica», igualmente «se cavam as divisões sociais» e se expandem intensificadas manifestações alienantes de coisificação. Importa, todavia, determinar com exactidão o feixe de razões que lhes está na origem, e não incorrer em amaldiçoamentos abstractos (precipitados e confusionistas).
Distribui-se por esta paleta de procedimentos, bem ao gosto (e conveniência) da pregação alarmada de certos sectores, por exemplo, o de «imputar ao desenvolvimento das Ciências da Natureza e às invenções mecânicas um mal que é, exclusivamente, devido à utilização que delas actualmente se faz», passando completamente em silêncio, e deixando a um cauto esquecimento (deliberado), que esse nefasto (e nefando) emprego determinado «depende do estado presente da estrutura da Sociedade e não das Ciências da Natureza em si, no seu espírito e no seu desenvolvimento».
Para Bento de Jesus Caraça, igualmente sob este prisma, é a inequívoca denúncia do modo capitalista de produzir e reproduzir o viver que vem à luz, junto com o premente apelo à responsabilidade colectiva dos humanos na transformação (no limite: revolucionária de condições que viabilizem uma existência dignificada, mais consentânea com as próprias possibilidades que globalmente se encontram já ao dispôr da humanidade.
Neste particular, compreender para transformar significa também combater com lucidez disfarçadas tentações grassantes de homilética soteriológica em torno do regresso redentor a idílios imaginados de singeleza silvestre, cuja efectiva implicação real se revela bem diversa afinal da imediatamente proclamada: «O retorno à vida simples, o abandono da ciência, da técnica, da máquina, não passa de uma divagação lírica de algumas epidermes hipersensíveis [...]. Se amanhã a ciência tivesse de ser abandonada seria, não para passar a um estado melhor de civilização, mas para cair, por muitos séculos, num estado informe de barbaria.».
Com efeito, outros — bem diferentes no conteúdo e intenção — terão de ser os caminhos trabalhosos do futuro.
Fulcral no pensamento, e no magistério, de Bento Caraça é, pois, um principial entendimento da radicação histórica material das actividades — na aparência induzida, e no teor de certas doutrinações — tidas por mais «espirituais» e sobrepairantes: «a Cultura e a Ciência, produtos humanos, acompanham os homens e forjam-se nas suas lutas, nas suas marchas inquietas para fugir ao sofrimento e buscar uma vida melhor».
É porque, tudo bem ponderado, «ciência, filosofia, arte, religiões, têm uma raíz comum — a actividade social homens», que não parece de estranhar que apresentem, no contorno do respectivo desenvolvimento material, vincados cunhos «epocais».
Por outro lado, é igualmente a partir desta primordial inserção contextualizante, de índole onto-histórica, que resulta possível elucidar uma parte substancial das dinâmicas que atravessam o percurso e a determinação dos saberes, contrariando interpretações disseminadas que privilegiam o tratamento «abstracto» ou transcendentalizante destas temáticas: «A Ciência não marcha de acordo com um plano lógico pré-estabelecido, marcha aos repelões, à medida das necessidades dos homens.».
Esta recorrente ocupação — mesmo em textos didácticos de directa e exclusiva intenção matemática — com o esclarecimento histórico-social de enquadramentos genético-problemáticos e de condicionalismos de implantação não representa qualquer assomo descabido de exibicionismo erudito, para edificação de estudante abasbacado; tão-pouco constitui — o que se revestiria de gravidade maior — qualquer especioso diluente metodológico, visando debilitar, a rajadas de pirotecnia haurida de outros domínios, a fundamentação e o rigor dos empreendimentos científicos. Bem pelo contrário.
Mutatis mutandis, algo de semelhante se pode observar no tratamento a que Bento Caraça submete a dialéctica da quantidade e da qualidade, em que esta surge pensada num horizonte constitutivamente relacional e aquela, «não como um objecto», mas como «um atributo da qualidade».
Nada, neste esforço consistente (para alguns, porventura, inusitado ou «excêntrico») de categorialização, inviabiliza ou macula, porém, o lugar inderrogável da dimensão quantitativa no delineamento e determinação do edifício científico.
Esta operação ocorre, desde logo, por razões ontológicas: «à medida que a Realidade se vai conhecendo melhor, o primado tende a pertencer ao tipo quantitativo»; e, de pronto, numa vertente abertamente epistemológica: «o estado propriamente científico de cada ramo [do saber] só começa quando nele se introduz a medida e o estudo da variação quantitativa como explicação da evolução qualitativa».
Nesta conformidade, a questão central, que de modo algum é objecto de artificiosa tergiversação, devém «procurar obter uma teoria quantitativa, da qual resultem métodos de cálculo que nos permitam fazer previsões, sujeitas ao teste da Experiência e da Observação».
À ciência incumbe, nestes termos, como «objectivo final», a demanda de definição de um horizonte de inteligibilidade, «a formação de um quadro ordenado e explicativo dos fenómenos do mundo físico e do mundo humano, individual e social».
A par da compreensão alargada de que a noção de «fenómeno natural» se vê investida, retenhamos a peculiar atenção que neste processo é conferida à conexão que entre domínios dinâmicos se verifica: «a tarefa essencial da Ciência é, não apenas registar os factos, mas, principalmente, descobrir os caminhos que vão de uns a outros».
Sobre um fundo ontológico abarcante jamais abandonado — «a realidade ambiente espacial-temporal é una e é dela que se alimenta todo o nosso conhecimento» —, a ciência, no seu desenvolvimento, tem de pautar-se, não só por exigências de coerência racional (o «acordo da razão consigo própria»), mas também pelos padrões de uma vigilante e permanente con-frontação com o real, na sua materialidade deveniente.
Nestes termos, cabe-lhe a ela acolher e reelaborar a «fluência» de que este se tece, no prospecto fundamental de dele dar razão: «A Ciência não tem, nem pode ter, como objectivo descrever a realidade tal como ela é. Aquilo a que ela aspira é a construir quadros racionais de interpretação e previsão; a legitimidade de tais quadros dura enquanto durar o seu acordo com os resultados da observação e de experimentação.».
Exercício, intrínseco e complexo, de racionalidade concreta in fieri, o conhecimento científico não pode abrir mão da observação cuidada e da experimentação orientada, no marco (indispensável) de uma conjugada acção recíproca de «inteligência» e de «sentidos», ou (para aceitar, sem mais debate quanto à justeza da acepção, terminologia aqui empregue) de «teoria» e de «prática», em que a dialéctica sempre actua, de modo a que, em concreto e acrescidamente, a ciência — sem perda ou diminuição dos seus constitutivos títulos de exigência — por sua vez se converta, na e pela sua democratizada disseminação social, em «instrumento de luta, sempre incompleto, constantamente aperfeiçoado».

Para Bento de Jesus Caraça, o compromisso com a busca do saber guarda o sabor da aventura; corresponde em contínuo a uma «fatigosa jornada do conhecimento», em que as petulantes veleidades sobranceiras do «definitivo» (antecipadamente tranquilizadoras e altamente cotadas no mercado dos leigos) têm que ser, com serenidade responsável, postas de parte.
Esta remoção cauta não ocorre como demonstração de modéstia apenas subjectiva (que ao «sábio», antidogmático confesso e levemente céptico, é suposto quadrar bem), mas porque, na realidade, o que se encontra em causa é uma extensão (em devir) do domínio do inteligível, o qual adiante de si sempre vai projectando novos desafios e tarefas: «em ciência, o alargamento dos horizontes do conhecimento significa sempre o alargamento correlativo do âmbito do desconhecido».
Daí, a profunda radicação processual da ciência — construção, des-construção, re-construção —, a qual nos aparece esboçada como «um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação».
Contra a dogmatização inchada de arquitecturas doutrinais que liminarmente proscrevem e evacuam «o erro» (ao jeito do sistema religioso de crenças), a empresa científica apresenta-se assumidamente como um «caminhar, tacteando, entre o que a intuição nos dá a partir da Realidade e o que a razão nos permite com os instrumentos que forja».
A adopção principial desta posição epistemológica de «tateio», caminhante (e não apenas expectatório), obriga a recolocar em campo de dilucidação crítica toda uma dialéctica de absoluto e de relativo na determinação (a que se não renuncia) do verdadeiro.
Num registo que em alguns ouvidos predispostos poderá ressoar (injustificadamente) como relativismo displicente, «a verdade de hoje é o erro de amanhã, [posto] que certeza e perplexidade se entrelaçam e reagem uma sobre a outra, ao longo desta gloriosa cadeia muitas vezes milenária que é a luta incessante do homem com a natureza e consigo próprio».
Aprofundando o nível da análise, porém, é algo de bem mais matizado o que surge no «entrançado» de «triunfos» e de «fracassos» cognitivos em que no concreto os saberes se movem: «Verdade e erro não podem tomar-se em absoluto, mas têm significado apenas quando apostos contra o seu contexto. De época para época este varia [...]. A Ciência é feita pelos homens para os homens, sujeitos a todas as suas limitações».
Daí a relevância propriamente científica de um estar desperto para a contradição e, em particular, para o papel que à categoria da «negação da negação» cabe, quer no processo ascendente da «generalização», quer como «fonte de criação», em geral: «onde há evolução para um estado superior, é realizada a negação de uma negação».
O determinismo, como sistema objectivo de legalidades quantificáveis, não pode satisfazer-se, pois, de atitudes e fórmulas cómoda ou linearmente «mecanicistas», porque o que concita o nosso poder de explicação é uma totalidade real em devir de que os próprios humanos constituem ingrediência interveniente.
Todavia, nada disto faz resvalar Bento de Jesus Caraça para a ribanceira arriscada da tentação lúdico-poética de converter a ciência em mero «jogo», onde a contrapartida ousada do vale tudo é a admissão prosaica de que tudo se equivale; como ele bem humoradamente observa, dada a base ontológica em que o saber se move e a elasticidade não indefinida do vanguardismo na arte dos sons: «há um limite para a liberdade de linguagem em Ciência, como há um limite para a desafinação em Música».
Em particular na situação seriamente degradada do Portugal do seu tempo, que a política salazarista mais contribuía para agravar, é dentro destes parâmetros concretos de exigência e de rigor que uma encruzilhada decisiva se depara ao conjunto dos cidadãos como ingente requerimento de opção: «ser por uma viragem total no sentido do nosso apetrechamento cultural e técnico, ou ser pelo prolongamento do abismo de ignorância e obscurantismo em que se está fazendo mergulhar o povo português».
Mesmo nesses transes de dolorosa incerteza e de quotidiana adversidade — o grande objectivo, a esclarecida linha de rumo, o propósito indefectível, reafirma os seus traços e contornos de coragem imperativa: «servir a humanidade».
Daí a pertinência, congruente e inadiável, de intervir no sentido de estender todo este conjunto de tarefas emancipadoras aos campos da educação, da arte e da cultura.

quarta-feira, março 04, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA III

3. Uma ontologia que se explicita.
É conhecida a distinção que Marx introduz, em sede de metodologia, no pós-fácio à segunda edição alemã de 0 Capital, entre o «modo de pesquisa» (Forschungsweise) e o «modo de exposição» (Darstellungsweise) no tratamento científico de uma matéria.
À sua maneira, e no âmbito dos seus propósitos propedêuticos, Bento de Jesus Caraça cura igualmente de contrapôr duas atitudes metódicas em face da ciência.
De acordo com a primeira, esta aparece «tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada», parecendo assim «bastar-se a si própria»; nos termos da segunda postura, há que acompanhar o saber «no seu desenvolvimento progressivo», onde se lhe descobrem «hesitações, dúvida, contradições», em que do fundo vem à luz «a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da Ciência».
Radicalizando ainda este instrumento teórico de demanda de inteligibilidade pelo surpreender de patamares diferenciados de abordagem, poderíamos porventura, perguntar: qual é a bateria de supostos ontológicos que sustenta o pensamento de Bento Caraça nas suas diversas vertentes?
Simplificadamente, a resposta que se desenha é a de um apurado e substante sentido da realidade — de contornos abertamente materialistas e processuais, tecido e entretecido de um viver colectivamente humanizado, que, em condições determinadas, se transforma e transforma.
Contra a «sedução alada» do idealismo em voga — esse «novo dialecto verborreico evanescente», exaltado na sua cominação dos «entraves da baixa materialidade», e deliberadamente cego ao manuseio onto-epistemológico da categoria da acção recíproca entre distintos níveis e modalidades do ser —, importa desenvolver, testar, e pôr de pé, em todos os campos, «tentativas de explicação materialista».
Esta nítida orientação assoma, não por preconceituoso apriorismo de capela ou por obtuso arrebique de confinamento rasteiro, mas tão-só porque, na ordem do que se revela primordial e verdadeiramente fundante, «a Realidade existe independentemente da nossa vontade» — ou, como mais adiante se reafirma num desafiante horizonte prospectivo: «a realidade excederá sempre a tua expectativa».
É, então, deste solo originário e originante, assim reconhecido e (re)encontrado, que terão de partir todas as diferentes viagens — teóricas e práticas — de exploração indagadora: «a realidade cuida pouco do que nós achamos ou não intuitivo e a mestra é ela e não nós; somos nós que temos de adaptar-nos a interpretá-la».
Uma despojada profissão de fé materialista — que, mesmo se liminar, muita reflexão preparatória consigo carrega já — não é todavia o bastante. Fundamental é penetrar na arquitectura de estruturação do real, e no movimento que interiormente o anima, delineando quadros e percorrendo linhas conflituais de determinação em que o dialecticamente contraditório a cada passo irrompe como instância e dinâmica constitutivas.
Daí que, tematizadamente, a «interdependência» e a «fluência» se apresentem como «características essenciais» da realidade, num marco generalizado de «interacção» que, admitindo embora o «recorte» abstractivo de «isolados» para efeitos de análise, principialmente exclui qualquer hipostasiação (ontológica) de «absolutos separados». É assim, pois, que «coisas e seres nos aparecem definidos sempre pelas suas relações no meio ou grupo em que estão integrados».
Num jeito que expressa e repetidamente não silencia invocações de Heraclito de Éfeso, o estudo científico do ser não pode fazer economia da consideração do devir. De um modo incontornável, ele encontra-se e palpita no e do coração do próprio real.
Quer quando matematicamemte se aprofunda o «método dos limites», a natureza das «variáveis», ou as «equações diferenciais»; quer quando, em termos de articulação procurada, se convertem em objecto de enfoque regiões e problemáticas mais abrangentes: «Vivemos no meio duma realidade que é mais forte do que as construções metafísicas ou as guitarradas ao luar doutros. E essa realidade é uma mobilidade intensa, uma transformação permanente e em movimento acelerado».
Complexidade e contextualização tornam-se — em registo dinâmico de entrelaçamento na polideterminação — perspectivas ontológicas decisivas de aproximação ao real, cujo potencial e indispensabilidade não podem, em momento algum, ser descurados.
A ontologia subjacente à obra de Bento de Jesus Caraça — mas sempre pronta a aflorar, e a explicitar-se, no tratamento que imprime às variadas questões sobre que se debruça ou em que se envolve — é, pois, materialista pelo seu enraizamento, e profundamente dialéctica em todo o seu exercício de demanda de concreção; no fundo, isto acontece porque ela arranca de uma autêntica compreensão originária do entramado histórico do ser, como processo de totalidade em devir de refiguração.
E aqui tocamos em outro núcleo crucial dos rumos que encaminham o seu pensar e o seu agir. É um verdadeiro centro de gravitação que se des-cobre a cada passo, mesmo quando aparentemente dado em zonas de mais remota periferia.
A «vida real» é a «madre», alimentadora e guia, em que tudo mergulha os seus fundamentos; «na sua constante criação de novidade», «renova-se, não se renega a si mesma, nem regressa».
Este viver real — que não é mera tonalidade subjectiva de uma «vivência», mas constitutiva ingrediência e trabalho do ser — incorpora e mobiliza humanidade, pondo à prova o grau de exigência das suas prestações.
Pela demanda fundada e histórica de saber e pela luta que transforma e enriquece patrimónios adquiridos — lançando mão do «carácter dialéctico da evolução dos conceitos» e de práticas de revolucionamento, que o perdurar de estruturas obsoletas convoca e uma orientação teoricamente ajustada conduz — cabe efectivamente aos humanos, a cada fase de um movimento uno, e do interior do próprio jogo de contradições que os dilaceram, conferir conteúdo e expressão determinados às figuras do devir do real.

terça-feira, março 03, 2009

Debates sobre futuro das reformas dos ex emigrantes

Na continuação das iniciativas que o PCP tem vindo a promover nas comunidades portuguesas e em vários pontos do país, sobre o futuro das reformas, estão agendadas as seguintes reuniões dirigidas aos ex-emigrantes:

No próximo dia 10 de Março, terça-feira, às 15h, no Centro de Trabalho do PCP na Baixa da Banheira (Concelho da Moita), Rua de Moçambique, n.º 4.

Dia 21 de Março, Sábado, às 15h, no salão de festas da Cooperativa, Largo Zeca Afonso, em Grândola.

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA II

2. Uma ideia geratriz.
De um singelo ponto de vista quantitativo, o que avulta imediata e inegavelmente é uma ocupação vocacional com a matemática. Concebida, desde a origem, não como sobrepairante exploração de um domínio lógico-transcendental depurado ou etéreo, mas como um «edifício» intrinsecamente humano, construído e em construção, que, sem ornamentações grandiloquentes, «obedece à necessidade de criar um instrumento que torne possível a compreensão da Natureza».
É neste marco que ela surge ora matizadamente entronizada como «Raínha das Ciências», ora carinhosamente descrita como uma «companheira democratizada e querida de todos nós», ora combativamente assimilada, num contorno que se presta e convida a outras extrapolações, a uma permanente tensão de enfrentamento resoluto com problemas perante os quais não há que esmorecer: «em Matemática a regra não é renunciar».
E, efectivamente, toda a actuação e produção de Bento de Jesus Caraça constitui um abnegado desmentido vivo, e persistente, da tentação de sucumbir aos encantamentos e encantos da renúncia.
Por isso me atrevo a afirmar que a ideia, emblemática e geratriz, que preside à sua multifacetada obra é aquela que ele próprio adianta, por diversas vezes, como lema norteador: «despertar a alma colectiva das massas», — ou, como pouco adiante acrescenta, em jeito de maior explicitação: «Precisamos, para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele.».
Na conjuntura carregada de nuvens sombrias em que o escreveu, Caraça tem seguramente uma consciência aguda dos perigos barbarizantes, e da realidade regressiva, de certos «apelos» inflamados, com rufo e trombeta, à demagogia turificadora do vulgo em clima belicoso de reacendida expansão imperialista.
E, todavia, não hesita em persistir na sua propugnação, porque, no fundo desta «palavra de ordem», como seu mais nativo sentido, é um pulsar outro que bate, e que convoca à transformação colectiva e esclarecida do hegemonicamente estabelecido.
Este acordar do povo que se cita e concita é, na verdade, incompatível com o enduro de situações de exploração económica ou de escravatura mental; visa recuperar retardamentos crónicos acumulados (brutalmente «estabilizados» ou com sofisticação induzidos) que debilitam e pervertem o agir unificado dos humanos; impõe inadiáveis «escolhas» subjectivas de orientação, com reflexos no encaminhamento da colectividade, perante ostensivos «dilemas» objectivos que uma «análise cuidada» não prescinde de pôr a nu.
Passada a época das teurgias messiânicas e dos rebanhos docilizados, abre-se uma via de feitura, e desdobra-se um exigente projecto, que urge tomar a cargo: «que cada um se purifique pelo pensamento autónomo e se crie a si mesmo uma personalidade, para que se possa formar uma colectividade de indivíduos fortes, colectividade que saiba, em cada momento, o que lhe convém e como realizá-lo».
Uma ideia, apenas uma «ideia» — repontarão, talvez não sem escândalo, alguns espíritos recalcitrantes, mais propensos a confundir materialismo consequente com tacanhez coisificante.
É porque conhece com justeza o valor das «ideias» que Bento Caraça não prescinde de denunciar com veemência certeira a recorrente tentativa idealista de as hipostasiar em «um ser autónomo» — expediente que mistifica nesse seu putativo estatuto a propositura tranquilizante de «um mundo artificial da permanência».
É porque sopesa com discernimento a influência nefasta de certas ideações com curso propagandeado que fustiga, em franca diatribe ideológica, uns quantos «arrebicados de embalagem a disfarçar o avariado da mercadoria», ideatos aos quais retardatariamente convém «o viajarem sempre em combóio de mercadorias no que respeita à realidade da vida».
É porque não subestima nem descura o papel historicamente emancipador de determinadas representações sociais que, sem pruridos de maior, discrimina claramente entre o grupo daquelas que promovem o avanço da humanidade e a classe das que, assemelhando-se a «um imenso cortejo de espectros», se apascentam do seu «efeito paralisador».
É porque não enjeita, ou esquece, o vigilante exercício da crítica — «provocar sempre, em cada inteligência, o trabalho fecundante do debate» — que ousa proclamar sem rodeios: «agitar ideias, a despeito do que dizem certos escribas abafadores de cultura, agitar ideias é mais do que viver, porque é ajudar a construir a vida».
Neste horizonte — onde rumos definidos se perfilam e desenham —, desenvolve Bento de Jesus Caraça uma ontologia embebida no devir, que à ciência cumpre desvendar, e em que educação, arte, cultura, empenhamento cívico se articulam e entrecruzam, no superior desígnio generoso de um trabalho enriquecido de humanidade.

domingo, março 01, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO JESUS CARAÇA I

1. Intróito.
Começo por saudar os Organizadores pela iniciativa benvinda destas celebrações, e por lhes agradecer a subida honra do convite para usar — murmurarão os mais precavidos e os menos benevolentes: abusar — da palavra nesta sessão.
Imagino que, a par de mais uma prova de coragem, terá pesado na decisão de me escolherem para este encargo aquela sentença de Bento de Jesus Caraça, de acordo com a qual «há sempre um filósofo para cada tarefa por mais retorsa e macabra»...
Entendo que a presente comemoração nada envolve de «fúnebre» compasso ou de «contorcida» tristeza — já que, bem pelo contrário, o trazer à memória a acção de um grande homem constitui sempre um exigente e poderoso incentivo ao reexame e à revitalização de tudo aquilo de justo por que lutou.
Do mesmo passo, porém, cumpre-me assumir em pleno a responsabilidade culposa pelo «retorce» no estilo que normalmente emprego e pela «funestação» deplorável que sobre este distinto auditório possa produzir — feitios, e defeitos, há muito empedernidos e falhos de correcção, de que antecipadamente (não sem alguma «má consciência») perante todos me penitencio.
Sustentava Bento Caraça — e praticava-o, no e do interior do seu diversificado magistério — que de «um trabalho de natureza filosófica» deve resultar, «em cada época histórica», um «conjunto de ideias que permitem a construção de uma concepção do mundo».
Procurarei, na esteira do caminho assim aberto, encontrar e formular algumas linhas de rumo do seu pensamento — ainda que dentro das minhas limitações pessoais intransponíveis: de sabença (que me proíbem adentramentos pelo domínio das matemáticas) e de registo biográfico geracional (que me interditaram em absoluto o privilégio do acesso directo ao ensinamento do mestre, riqueza experiencial de que muitos fruíram ao privarem e conviverem com ele, ao longo do seu percurso pedagógico, científico, cultural e cívico).
Tive, portanto, de socorrer-me, para a elaboração do presente exercício hermenêutico, da obra escrita de Bento de Jesus Caraça, na sua forma actual de publicação — forma, ao que julgo saber, felizmente, em vias de enriquecimento pela edição próxima de novos materiais inéditos ou dispersos, e de um acervo mais completo da correspondência.
A releitura a que procedi veio, entretanto, robustecer em mim a convicção inicial de que esta estratégia de demanda das «linhas de rumo» de um pensamento se encontra satisfatoriamente ajustada, não apenas ao objectivo circunstancial de compor este discurso, mas inclusivamente à natureza do teor genuíno da matéria em análise.
Arrisco, assim, a afirmação principial de que, em todos os campos sobre que se debruçou, Bento Caraça tratou deliberada e assumidamente de fazer emergir, como preocupação estruturante do seu esforço intelectual, os vectores de orientação para a vida, originariamente inscritos (mesmo se de imediato indetectados) num emaranhado disperso de factualidades, de informação, de cogitações — por cuja inteligibilidade é indeclinável tarefa progressiva de humanidade perguntar.
Neste sentido, no seu porfiado labor, permaneceu ele próprio fiel, sempre, a um enunciado teorético lapidar que repetidamente avançou, e que com consequência prosseguiu: «Não basta conhecer os fenómenos; importa compreender os fenómenos, determinar as razões da sua produção, descortinar as ligações de uns com outros.».
Tudo isto num escopo, não apenas de ganho ou aquisição de um saber puro gratificante de escolar competente, mas numa perspectiva, e numa prospectiva, de emancipação prática — apontada à edificação solidária e lúcida «duma estrutura da sociedade em que todos os homens possam viver uma vida digna; em que, a uma segurança material para todos, se alie um conjunto de condições que permita o aproveitamento máximo das possibilidades de cada um; em que a liberdade económica, seguida da liberdade intelectual, sejam a base da regulação das relações entre os homens.».