sexta-feira, março 06, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA VI

6. Um empenhamento cívico combativo pela humanização da humanidade.
É mais do que tempo de concluir esta já longa excursão pelos testemunhos do pensar de Bento Caraça — em que nem sequer é seguro que da função de «cicerone» que avoquei me haja desempenhado à altura da riqueza subtil e da profundidade real do muito que nele há para mostrar ou dar a ver com semente de futuro.
Entendo, não obstante, que o percurso que empreendemos — em cada estação em que pousámos, e no ritmo que enlaça os diferentes momentos considerados — serviu para documentar e robustecer a ideia geratriz de um arreigado e combativo empenhamento cívico (pesoalmente interpretado, mas com um desígnio individual e colectivo) pela humanização da humanidade, obreira da, e responsável pela, sua destinação mundana.
Caraça, nos seus escassos anos de vida, preencheu por inteiro e intensamente este itinerário: na teorização de alto calibre que nos legou, no património vasto de instituições a que deu corpo e fôlego, na militância pública e clandestina (nas fileiras do Partido Comunista Português) que com denodo e coragem desenvolveu.
Bento Caraça, lutador destacado em frentes várias no difícil combate anti-fascista, revela uma consciência nítida (e praticante) do papel e do valor da negatividade (e, portanto, da oposição) na dialéctica real da construção histórica. Como ele próprio, com desassombro, afirma, em formulação que comporta vitualidades de modelo extensível a outros tópicos: «Toda a forma de humanismo vale tanto pelo que é como [por] aquilo contra que é».
Esquematizando, sem todavia incorrer em excessos redutores de simplificação:
Contra a treva requintada (requentada) da ignorância cediça, em obediência à qual «há sempre gente para quem as coisas mais obscuras são a própria claridade>> — o manejo paciente e rigoroso da «lâmina aguda da razão», como instrumento de demanda daquela luminosidade emancipadora que permite adentramento e orientação pelas silvas emaranhadas do desconhecido (mesmo que próximo).
Contra a bárbara apoteose, sanguinolenta e negocista, do belicismo de quantos «exaltam a guerra (em que só os outros morrem)» — a promoção solidariamente internacionalista e democrática do «espírito de pacifismo», que todavia não hesita em alinhar-se para a refrega na «trincheira da luta pela Humanidade».
Contra a (des)ordem da dominação capitalista reinante, que, expirado o seu prazo histórico de validade, tritura e se ri dos ideais políticos de cidadania sobre que avançou e se ergueu, para desenfrear tão-só os expansivos apetites exploradores do «Deus-Produção» — «o fortalecimento da justiça sobre a terra», mediante a introdução revolucionária das correspondentes alterações de estrutura na orgânica económica e social.
Contra o conformismo derrotista (porque objectivamente derrotado) ante o progresso, mas obstinado e renitente, dos que teimam em conservar, a qualquer preço, o que se revelou já insustentável num ciclo mais longo — a confiança social trabalhada (e trabalhosa) no poder material da transformação que, constituindo embora «lei da vida», nem por isso dispensa por um momento os humanos de a tomarem a seu cargo e de lhe darem caminho, superando sucessivos obstáculos.
Em toda esta concepção articuladamente global de Bento Caraça, à economia corresponde um patamar estrutural que comanda o quadro fundamental, e condiciona a dinâmica, dos relacionamentos sociais na produção e reprodução do seu viver.
«Base de inserção» de todos os ramos da actividade, com impacte e ressonância, inclusivamente, na marcha do desenvolvimento de operações teoréticas — «o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar», até para que se possa, com prospecto emancipador, trilhar «a senda da cultura», posto que «o desenvolvimento harmónico da personalidade é incompatível com a sujeição a condições materiais precárias».
Dito isto, e assentes estes alicerces (que importa não olvidar), encontramo-nos, no entanto, bem longe de qualquer apologia ou propugnação do «economicismo» — como variante (aquietadamente atentista ou antecipadamente triunfal) de um mecanicismo simplista e fantasmático que evacua dos processos históricos a condicionada, mas decisiva, intervenção das massas sociais em movimento, ingredientes activos elas próprias do devir das realidades.
Bento de Jesus Caraça manifesta-se particularmente claro e contundente a este respeito, recusando por completo subscrever quaisquer laivos de exaltação gloriosa e majestática do «fatalismo em história», que apelida sem rebuços de «um reles biombo de papel atrás do qual se abrigam, ou julgam abrigar-se, os ineptos e os preguiçosos»:
«Não há fatalidade em história», declara frontalmente com firmeza serena, mas bem alicerçada, «o que acontecerá... é sempre determinado pelo jogo dos elementos em presença. Em cada momento, o homem age sobre o meio que o cerca e o meio age sobre o homem — o que sai dessa acção recíproca é o que ela determinar e não o que, em obediência a um obscuro misticismo fatalista, se considera como aquilo que tem de ser. Aquilo que tem de ser não é ainda, e, como tal, pode vir a não ser.».
Removido o expediente indolente da automática linearidade ascensional, resulta, assim, que não estamos igualmente em presença de uma lógica de oscilação periódica (em que a mudança é repetição de alternâncias cíclicas, que à vez se vão sucedendo, com alguns estádios de transição de permeio), mas que nos confronta e envolve um processo, aberto e em construção, tecido e entretecido de contraditoriedade, onde a criação em acto retém adquiridos e pro-duz novação: «Não há movimento pendular, há movimento dialéctico» em que as oposições devenientes se resolvem «não num retorno estagnante a qualquer forma passada, mas sim numa síntese que é um estado superior em que alguma coisa se criou».
Daí, por um lado, o lugar estruturante das revoluções (que não se abatem do céu por decreto divino, nem se elevam da terra por mera intensificação das vontades) e, por outro, a necessidade humana de agir — no e do interior de condições determinadas, que importa conhecer com precisão rigorosa para transformar adequadamente.
Quando «os interesses dos grupos, castas ou classes, detentores do poder, ou duma sua parcela» se encontram «em franco antagonismo com os interesses gerais», verificam-se «épocas de comoção dos fundamentos da sociedade», em que os novos protagonistas sociais emergem, adquirindo um peso determinante de liderança.
Ao tempo que corria e com o andamento que a história levava (num quadro agudizado de conflitualidades, repercutindo-se assimetricamente no interior dos diferentes países), a arrumação e correlação das forças sociais em dinâmica presença ganhava contornos tendenciais nítidos; não por excesso esperançado de visionarismo anelante, mas por consideração atenta de possibilidades reais em movimento efectivo: «a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente.».
É dentro desta moldura movente que ganha inadiável expressão de urgência a formação de um colectivo, não ao jeito de um arrebanhamento de entusiastas deslumbrados, mas, com exigência e qualidade, constituído por personalidades fortes e consistentes, onde — dissolvendo-se abstractas antinomias entre «indivíduos» e «massas» — se faça prevalecer, enraízada e conscientemente, os verdadeiros «interesses gerais» sobre mesquinhos e persistentes «interesses de classe».
Sem antropomorfismos redutores e contraproducentes (onde o pesadume da retórica suplanta em muito o seu efeito), mas com um porfiado trabalho de cultivo da Natureza e da socialidade, segundo rumos de afirmação consolidada da razão e da justiça (em processo de que os intelectuais não hão-de ser afastados, nem se podem demitir); sobremaneira sem mitificações alienantes e mistificatórias do que realmente em causa está — a mensagem que se desprende, e toma voo, é grandiosa e inequívoca nos seus propósitos de ampla respiração e alcance: «expulsai os falsos deuses; valorizai o homem, acabando com a projecção abusiva e criminosa do indivíduo sobre o colectivo; humanizai a sociedade!».
Chega, deste modo, à luz da publicidade comunicante, e do desafio prático que a prolonga, a resplandecente face solidária do humanismo militante, revolucionário, de Bento de Jesus Caraça.
Liberto das peias e dos tiques (em larga medida, «modernos») de uma circunscrição à esfera (burguesamente confortável) da intimidade individualista, combativo no terreno por generosas causas de humanidade, é para «um humanismo do homem pelo grupo» que se aponta — em que «a realização total do homem só pode conseguir-se através da sua comunhão com a sociedade em todo o complexo da sua organização», e no qual se apela decididamente «ao colectivo como agente regenerador da sociedade, cadinho de purificação de velhos valores e fonte de novas razões de viver».
Formando «homens novos», capazes de fazer do mundo «uma sociedade de homens livres», é do mesmo passo o cumprir de uma destinação de humanidade que, em horizonte (a trabalhar), se perfila: «a realização da obra que nos cabe» é «uma grande construção colectiva» — «a Cidade Nova, o grande templo do trabalho criador, onde seja abolida a miséria e atenuado o sofrimento humano».
Ao cabo desta exposição fastidiosa — não decerto pelos conteúdos que pretendeu evocar, mas pela desastrada forma de mostração em que os acabou por verter —, sensibilidades pós-amodernadas haverá que ao pensamento de Bento de Jesus Caraça apenas se dignarão conferir o estatuto de «obsolescido» monumento a reverenciar, como «piedoso» testemunho museológico de uma época e de anseios irremediavelmente revolutos. Enfim, «cousa» e «coita» de recauchutados próceres delicados da «razão debilitada», do inultrapassável «fragmentário», da «leveza frágil» do ser...
E, no entanto, reiteradas opinações e comportamentos desta índole — só na aparência, paradoxalmente — não fazem mais do que vir confirmar, num peculiar registo hodierno, a actualidade persistente da ideia geratriz que anima o generoso percurso de Bento Caraça.
Todos estamos cientes — e Bento de Jesus Caraça para essa eventualidade não deixou de nos precaver e alertar — de que o mundo se transformou, e de que transformadas são hoje as condições que continuam a reclamar transformação.
Mesmo em «períodos de tranquilidade», recordava Caraça, «as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso». Subsiste, na verdade e sem impenetráveis mistérios, minando a forma fenoménica do acontecer (qualquer que seja a figura por que se manifesta), um pulsar contraditório das realidades que não pode ser esquecido nem menosprezado, sob pena de desencantadoras surpresas.
Por outra parte, neste contexto prosseguido de uma história que não fechou as portas para descanso terminal, nem confirma apregoadas e sucessivas certidões de óbito (que alguns teimam inflamadamente em passar-lhe), persiste — renovada e responsabilizadora — a tarefa, individual e colectiva, de inscrever, como sinal da qualidade que somos, o cunho da nossa humanidade no corpo deveniente do ser.
A busca de refúgio na «bruma da utopia» pode induzir em espíritos predipostos, a par de imaginosas elocubrações futurantes sobre fins a atingir sem o correspondente cuidado prático pelos meios para lá chegar, uma compensatória ilusão de movimento.
A acomodação rasteira ao existente — lamentável «espectáculo degradante da renúncia do povo em si próprio» — proporciona decerto, aos mais habilidosos, navegações de curta cabotagem e, aos que a tal postura se podem entregar, talvez despreocupadas aquietações imediatas.
O capitulacionismo desistencial, mesmo quando elegantemente estilizado, era um triste velho conhecido de Bento Caraça. Daí as cáusticas palavras que lhe concede: «Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem ».
Por custosas e inquietantes que se pressintam as alternativas encaráveis, nas derivas de errância a que acabamos de aludir não se esgota, porém, a panóplia de opções que ao viver se oferece.
Outros rumos, outras rotas, outros desafios e combates existem, que suscitam de nós todos atenção, empenho, e compromisso — porque a existência, por mais dolorosa e hostil que se apresente, nunca está por inteiro encerrada: sempre adiante de si pro-jecta leques de possibilidades reais a explorar e materializar segundo desígnios de avanço na senda enriquecida de humanização.
Nesta linha de sageza prática que em todo o tempo se questiona e busca, sem dúvida, merece radicalização de sondagem, e mantém validade alargada, um comentário de Bento Caraça, originalmente ligado à perplexidade sentida perante a sucessão de um conjunto de problemas matemáticos: «Estamos na situação do caminheiro que, após longa jornada, vê subitamente alongar-se o caminho com uma volta inesperada numa dobra do terreno.».
Saibamos nós, tentativos obreiros em construção de concreta cidadania humana, íntegra e integral, estar à altura, pela teoria e na prática, das caminhadas dificultosas que os dias de hoje, cada vez mais, reclamam.

Muito obrigado pela paciência da vossa atenção.

Lisboa, Março-Abril de 2001

Sem comentários: