terça-feira, outubro 21, 2008

Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação III

3. Particularidades Concretas da Questão Nacional na Rússia e a Transformação Democrático-Burguesa Desta

«... Apesar da elasticidade do princípio do 'direito das nações à autodeterminação', que é o mais puro lugar-comum, sendo, evidentemente, aplicável de igual maneira não só aos povos que vivem na Rússia mas também às nações que vivem na Alemanha e na Áustria, na Suíça e na Suécia, na América e na Austrália, não o encontramos nem num só programa dos partidos socialistas contemporâneos...» (n.° 6 da Przeglad, p. 483).
Assim escreve Rosa Luxemburg no início da sua campanha contra o § 9 do programa marxista. Atribuindo-nos a interpretação deste ponto do programa como «o mais puro lugar-comum», Rosa Luxemburg incorre ela própria precisamente neste pecado ao declarar com divertida ousadia que este ponto é «evidentemente, aplicável de igual maneira» à Rússia, à Alemanha, etc.
Evidentemente, responderemos nós, Rosa Luxemburg decidiu dar no seu artigo uma compilação de erros lógicos que serviriam para exercícios escolares de alunos liceais. Porque a tirada de Rosa Luxemburg é um perfeito disparate, é troçar da colocação histórica concreta da questão.
Se interpretarmos o programa marxista não de modo infantil, mas de modo marxista, então não é nada difícil compreender que ele se refere aos movimentos nacionais democrático-burgueses. E se assim é — e é, indubitavelmente, assim — então daí deduz-se «evidentemente» que este programa se refere «indiscriminadamente» como «um lugar-comum», etc, a todos os casos de movimentos nacionais democrático-burgueses. Não seria menos evidente também para Rosa Luxemburg, com um mínimo de reflexão, a conclusão de que o nosso programa se refere apenas aos casos em que existe um tal movimento.
Se tivesse pensado sobre estas considerações evidentes, Rosa Luxemburg teria visto sem um trabalho particular o disparate que disse. Acusando-nos de apresentar um «lugar comum», ela cita contra nós o argumento de que nos programas de países onde não existem movimentos nacionais democrático-burgueses não se fala da autodeterminação das nações. Um argumento admiravelmente inteligente!
A comparação do desenvolvimento político e económico de diferentes países, bem como dos seus programas marxistas, tem um enorme significado do ponto de vista do marxismo, pois são indubitáveis tanto a natureza capitalista geral dos Estados modernos, como a lei geral do seu desenvolvimento. Mas é preciso fazer com habilidade semelhante comparação. A condição elementar para isso é o esclarecimento da questão de se são comparáveis as épocas históricas do desenvolvimento dos países que se compara. Por exemplo, só perfeitos ignorantes (como o príncipe E. Trubetskói na Rússkaia Misl[N315]) podem «comparar» o programa agrário dos marxistas russos com os europeus ocidentais, pois o nosso programa dá resposta à questão da transformação agrária democrático-burguesa, da qual nem sequer se fala nos países ocidentais.
O mesmo se passa relativamente à questão nacional. Na maioria dos países ocidentais foi há muito resolvida. É ridículo procurar resposta nos programas ocidentais para perguntas que não existem. Rosa Luxemburg perde aqui de vista exactamente o principal: a diferença entre países com transformações democrárico-burguesas há muito terminadas e aqueles onde elas não estão terminadas.
Nesta diferença é que está o nó da questão. A completa ignorância desta diferença transforma o extensíssimo artigo de Rosa Luxemburg num conjunto de lugares-comuns ocos e sem conteúdo.
Na Europa Ocidental, continental, a época das revoluções democrático-burguesas abarca um período de tempo bastante determinado, aproximadamente de 1789 a 1871. Foi exactamente esta a época dos movimentos nacionais e da formação dos Estados nacionais. No fim desta época a Europa Ocidental tinha-se transformado num sistema de Estados burgueses, e regra geral Estados nacionalmente homogéneos. Por isso procurar agora o direito à autodeterminação nos programas dos socialistas europeus ocidentais significa não compreender o á-bê-cê do marxismo.
Na Europa Oriental e na Ásia a época das revoluções democrático-burguesas não fez mais do que começar em 1905. As revoluções na Rússia, na Pérsia, na Turquia, na China, as guerras nos Balcãs — eis a cadeia de acontecimentos mundiais da nossa época no nosso «Oriente». E nesta cadeia de acontecimentos só um cego pode deixar de ver o despertar de toda uma série de movimentos nacionais democrático-burgueses e de aspirações à formação de Estados nacionalmente independentes e nacionalmente homogéneos. Precisamente porque e só porque a Rússia, juntamente com os países vizinhos, atravessa essa época, é que nos é necessário o ponto relativo ao direito das nações à autodeterminação no nosso programa.
Mas continuemos um pouco a citação já mencionada do artigo de Rosa Luxemburg:
«...Em particular — escreve ela — o programa de um partido que actua num Estado com uma composição nacional extraordinariamente heterogénea e para o qual a questão nacional desempenha um papel primordial — o programa da social-democracia austríaca não contém o Princípio relativo ao direito das nações à autodeterminação» (loc. cit.).
Assim, quer-se convencer o leitor «em particular» com o exemplo da Áustria. Vejamos, do ponto de vista histórico concreto, se há muita coisa de razoável neste exemplo.
Em primeiro lugar, coloquemos a questão fundamental sobre se foi levada a cabo a revolução democrático-burguesa. Na Áustria ela começou no ano de 1848 e terminou em 1867. Desde então, ao longo de quase meio século impera ali uma constituição burguesa mais ou menos estabelecida na base da qual actua legalmente o partido operário legal.
Por isso nas condições internas de desenvolvimento da Áustria (isto é, do ponto de vista do desenvolvimento do capitalismo na Áustria em geral e nas suas diversas nações em particular) não há factores que dêem lugar a saltos uma de cujas consequências pode ser a formação de Estados nacionais independentes. Pressupondo com a sua comparação que a Rússia se encontra nesse ponto em condições análogas, Rosa Luxemburg não só admite uma hipótese radicalmente falsa, anti-histórica, como também resvala involuntariamente para o liquidacionismo.
Em segundo lugar, tem um significado particularmente grande a correlação completamente diferente entre as nacionalidades na Áustria e na Rússia quanto à questão que estamos a tratar. A Áustria não só foi durante longo tempo um Estado em que predominavam os alemães, como também os alemães da Áustria pretendiam a hegemonia na nação alemã em geral. Esta «pretensão», como talvez se digne recordar Rosa Luxemburg (que pretensamente tanto detesta lugares-comuns, chavões, abstracções...) foi liquidada pela guerra de 1866. A nação dominante na Áustria, a alemã, viu-se fora dos limites do Estado alemão independente, que se formou definitivamente por volta de 1871. Por outro lado, a tentativa dos húngaros de formar um Estado nacional independente fracassara já em 1849, sob os golpes do exército russo composto de servos.
Deste modo criou-se uma situação extraordinariamente original: a tendência dos húngaros, e depois também dos checos, exactamente não para se separar da Áustria, mas para conservar a integridade da Áustria precisamente no interesse da independência nacional, que poderia ser totalmente esmagada por vizinhos mais rapaces e fortes! A Áustria transformou-se, por força desta situação original, em Estado bicêntrico (dualista), e agora está a transformar-se em Estado tricêntrico (trialista: alemães, húngaros e eslavos).
Existe algo semelhante na Rússia? Há entre nós a tendência dos «alógenos» para a união com os grão-russos sob a ameaça duma opressão nacional pior ?
Basta colocar esta questão para ver até que ponto a comparação da Rússia com a Áustria quanto à questão da autodeterminação das nações é sem sentido, estereotipada e ignorante.
As condições originais da Rússia em relação à questão nacional são exactamente opostas ao que vimos na Áustria. A Rússia é um Estado com um centro nacional único, grão-russo. Os grão-russos ocupam um gigantesco território contínuo, e o seu número aproxima-se de 70 milhões de pessoas. A particularidade deste Estado nacional é, em primeiro lugar, que os «alógenos» (que constituem em conjunto a maioria da população — 57 %) povoam exactamente a periferia; em segundo lugar, que a opressão destes alógenos e muito mais forte que nos Estados vizinhos (e até não só nos europeus); em terceiro lugar, que em toda uma série de casos as nacionalidades oprimidas que vivem na periferia têm compatriotas seus do outro lado da fronteira que desfrutam de maior independência nacional (basta recordar apenas nas fronteiras ocidentais e sul do Estado os finlandeses, suecos, polacos, ucranianos, romenos); em quarto lugar, que o desenvolvimento do capitalismo e o nível geral de cultura frequentemente é superior na periferia «alógena» do que no centro do Estado. Finalmente, precisamente nos Estados asiáticos vizinhos vemos o início do período de revoluções burguesas e de movimentos nacionais, que se estendem em parte às nacionalidades afins dentro das fronteiras da Rússia.
Deste modo, são precisamente as particularidades históricas concretas da questão nacional na Rússia que tornam no nosso país especialmente urgente o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação na época que atravessamos.
Aliás, até mesmo do lado puramente factual, é incorrecta a afirmação de Rosa Luxemburg de que no programa dos sociais-democratas austríacos não figura o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação. Basta abrir as actas do congresso de Brünn, que adoptou o programa nacional[N316], e veremos aí as declarações do social-democrata ruteno Hankiewicz em nome de toda a delegação ucraniana (rutena) (p. 85 das actas) e do social-democrata polaco Reger em nome de toda a delegação polaca (p. 108) de que os sociais-democratas austríacos de ambas as nações mencionadas incluem entre as suas aspirações a aspiração à unificação nacional, à liberdade e à independência dos seus povos. Consequentemente, a social-democracia austríaca, não colocando abertamente no seu programa o direito das nações à autodeterminação, ao mesmo tempo conforma-se plenamente com a apresentação por partes do partido da reivindicação de independência nacional. De facto isto significa justamente, como é natural, reconhecer o direito das nações à autodeterminação! Deste modo, a referência de Rosa Luxemburg à Áustria fala em todos os sentidos contra Rosa Luxemburg.

4 comentários:

Anónimo disse...

Só dentro de certos pormenores históricos e dentro de um determinado contexto, se pode reconhecer a autodeterminação das nações.
Abraço e Bom Fim de Semana

Ana Camarra disse...

CRN

Este tipo de conclusões costumam levar quem as faz a um beco sem saida.
Quando a analise histórica, politica e social é subvertida para "encaixar" num determinado modelo dá bronca...
É ver hoje em dia, o exemplo dos EUA que atacam diversos paises com o pretexto da garantia dos Direitos Humanos e simultaneamente aplicam a pena de morte ou ainda os ataques com o pretexto de que os outros paises possuem armas de destruição massiva, mas no entanto o único país que alguma vez as utilizou foi os EUA, também são o maior produtor de armamento, etc...
Portanto em rigor não se pode ter dois pesos e duas medidas, uma para o nosso povo, país ou mesmo familia e uma para os "outros".
Isto remete-me novamente ás velhas questões do Colonialismo Europeu, já amplamente discutidas aqui neste teu espaço, deixo aqui mais uma quadra de António Aleixo, para mim encaixa:

"À guerra não ligues meia,
Porque alguns grandes da terra,
Vendo a guerra em terra alheia,
Não querem que acabe a guerra."

Beijos

Anónimo disse...

Ludo,
A autodeterminação deve ser sempre reconhecida, sempre que reclamada dentro da ética.

A revolução é hoje!

Anónimo disse...

Ana,
Dicotomias, éticas ponderadas segundo a conveniência, dualismos, ambiguidades, são sempre dificeis de tomar como norma, reconhecer a vontade de um povo, sem manipulações externas é, hoje, uma questão maior.

A revolução é hoje!