sexta-feira, dezembro 26, 2008

O Estado e a Revolução III

3. Primeira fase da Sociedade Comunista

Na Crítica do Programa de Gotha, Marx refuta detalhadamente a idéia de Lassalle, segundo a qual o operário, sob o regime socialista, receberá o produto "intacto", o "produto integral" do seu trabalho. Ele demonstra que, da totalidade do produto social, é preciso deduzir o fundo de reserva, o fundo de ampliação de produção, a amortização da ferramenta usada, etc., e, em seguida, sobre os objetos de consumo, um fundo para as despesas de administração para as escolas, os hospitais, os asilos de velhos, etc.
Em lugar da fórmula imprecisa, obscura e geral de Lassalle sobre o direito do operário ao "produto integral do seu trabalho", Marx estabelece o orçamento exato da gestão de uma sociedade socialista. Ele faz a análise concreta das condições de vida em uma sociedade liberta do capitalismo, e expressa-se assim:
O de que se trata aqui é de uma sociedade comunista, não tal como se desenvolveu na base que lhe é própria, mas, ao contrário, tal como acaba de sair da sociedade capitalista; por conseguinte, de uma sociedade que, sob todos os pontos de vista, econômico, moral e intelectual, traz ainda os estigmas da antiga sociedade de cujos flancos sai.
É essa sociedade comunista que acaba de sair dos flancos do capitalismo, e que ainda traz todos os estigmas da velha sociedade, o que constitui para Marx a "primeira" fase, a fase inferior do comunismo.
Os meios de produção deixaram de ser, nesse momento, a propriedade privada de indivíduos, para pertencerem à sociedade inteira. Cada membro da sociedade, executando uma certa parte do trabalho socialmente necessário, recebe um certificado constatando que efetuou determinada quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns públicos, uma quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu.
Reina uma "igualdade" aparente.
Mas, quando, tendo em vista a ordem social habitualmente chamada socialismo e que Marx chama de primeira fase do comunismo, Lassalle diz que há nela "justa repartição", aplicação do "direito igual de cada um ao produto igual do trabalho", Lassalle se engana e Marx explica por quê.
O "direito igual", diz Marx, encontramo-lo aqui, com efeito, mas é ainda o "direito burguês", o qual, como todo direito, pressupõe uma desigualdade. Todo direito consiste na aplicação de uma regra única a diferentes pessoas, a pessoas que, de fato, não são nem idênticas nem iguais. Por conseqüência, o "direito igual" eqüivale a uma violação da igualdade e da justiça.
Com efeito, cada um recebe, por uma parte igual de trabalho social, uma parte igual da produção social (dedução feita da quantidade destinada ao fundo social).
Ora, os indivíduos não são iguais; é um mais forte, outro mais fraco; um é casado, outro celibatário; este tem mais filhos, aquele tem menos, etc.
Com igualdade de trabalho, conclui Marx, e, por conseqüência, com igualdade de participação no fundo social de consumo, um recebe, efetivamente, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro, etc. Para evitar todas essas dificuldades o direito deveria ser, não igual, mas desigual.
A primeira fase do comunismo ainda não pode, pois, realizar a justiça e a igualdade; hão de subsistir diferenças de riqueza e diferenças injustas; mas, o que não poderia subsistir é a exploração do homem pelo homem, pois que ninguém poderá mais dispor, a título de propriedade privada, dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra. Destruindo a fórmula confusa e pequeno-burguesa de Lassalle, sobre a "desigualdade" e a "justiça" em geral, Marx indica as fases por que deve passar a sociedade comunista, obrigada, no início, a destruir apenas o "injusto" açambarcamento privado dos meios de produção, mas incapaz de destruir, ao mesmo tempo, a injusta repartição dos objetos de consumo, conforme o trabalho e não conforme as necessidades.
Os economistas vulgares, e entre eles os professores burgueses, inclusive o "nosso" Tugan, acusam continuamente os socialistas de não levarem em conta a desigualdade dos homens e "sonharem" com a supressão dessa desigualdade. Essas censuras, como o vemos, não fazem senão denunciar a extrema ignorância dos senhores ideólogos burgueses.
Não só Marx leva em conta, muito precisamente, essa desigualdade inevitável, como ainda tem em conta o fato de que a socialização dos meios de produção - o "socialismo", no sentido tradicional da palavra - não suprime, por si só, os vícios de repartição e de desigualdade do "direito burguês", que continua a predominar enquanto os produtos forem repartidos "conforme o trabalho".
Mas isto, continua Marx, são dificuldades inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como saiu, depois de um longo e doloroso parto, da sociedade capitalista. O direito não pode nunca estar em nível mais elevado do que o estado econômico e do que o grau de divisão social correspondente.
Assim, na primeira fase da sociedade comunista, corretamente chamada socialismo, o "direito burguês" é apenas parcialmente abolido, na medida em que a revolução econômica foi realizada, isto é, apenas no que respeita aos meios de produção. O "direito burguês" atribui aos indivíduos a propriedade privada daqueles. O socialismo faz deles propriedade comum. É nisso, e somente nisso, que o "direito burguês" é abolido.
Mas ele subsiste em sua outra função: subsiste como regulador (fator determinante) da repartição dos produtos e do trabalho entre os membros da sociedade. "Quem não trabalha, não come", este princípio socialista já está realizado; "para soma igual de trabalho, soma igual de produtos", este outro princípio socialista está igualmente realizado. Mas isso ainda não é o comunismo e ainda não abole o "direito burguês", que, a pessoas desiguais e por uma soma desigual, realmente desigual, de trabalho, atribui uma soma igual de produtos.
É uma "dificuldade", diz Marx, mas é uma dificuldade inevitável na primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não se pode pensar que. logo que, o capitalismo. seja derrubado, os homens saberão, de um dia para o outro, trabalhar para a sociedade sem normas jurídicas de nenhuma espécie. A abolição do capitalismo não dá, aliás, de uma só vez, as premissas econômicas de uma mudança semelhante,
Ora, não há outras normas senão as do "direito burguês". É por isso que subsiste a necessidade de um Estado que, embora conservando a propriedade comum dos meios de produção, conserva a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição.
O Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há mais classes e em que, por conseguinte, não há mais necessidade de esmagar nenhuma classe.
Mas, o Estado ainda não sucumbiu de todo, pois que ainda resta salvaguardar o "direito burguês" que consagra a desigualdade de fato. Para que o Estado definhe completamente, é necessário o advento do comunismo completo.

2 comentários:

Ana Camarra disse...

CRN

Li os três textos, são uma especie de aula teorica sobre o que acreditamos.
Como sabes sou mais emotiva do que académica, não querendo com isto dizer que o sejas, apenas temos as nossas sensibilidades.
Será isso também uma fonte de riqueza, a nossa diversidade, de riqueza humana.
Então deixo-te aqui a colaboração de dois grandes camaradas, José Gomes Ferreira escreveu as palavras, Fernando Lopes Graça musicou-as.
Duas sensibilidades diferentes, o mesmo ideal.

"Jornada
Não fiques para trás oh companheiro
É de aço esta fúria que nos leva
Para não te perderes no nevoeiro
Segue os nossos corações na treva.


Vozes ao alto, vozes ao alto
Unidos como os dedos da mão
Havemos de chegar ao fim da estrada
Ao sol desta canção.

Aqueles que se percam no caminho
Que importa? Chegarão no nosso brado
Porque nenhum de nós anda sózinho
E até mortos vão a nosso lado."

Beijos

Anónimo disse...

Ana,
Bonita letra. No relativo aos textos - os quais fazem parte do espólio de Lenin, faltando ainda alguns dias para terminar este V capitulo - se constituissem cátedra estaria o mundo muito melhor, mas não, são o legado daqueles que procuraram um mundo livre, plural e, fundamentalmente, possivel.
É possivel!

A revolução é hoje!