2. Uma ideia geratriz.
De um singelo ponto de vista quantitativo, o que avulta imediata e inegavelmente é uma ocupação vocacional com a matemática. Concebida, desde a origem, não como sobrepairante exploração de um domínio lógico-transcendental depurado ou etéreo, mas como um «edifício» intrinsecamente humano, construído e em construção, que, sem ornamentações grandiloquentes, «obedece à necessidade de criar um instrumento que torne possível a compreensão da Natureza».
É neste marco que ela surge ora matizadamente entronizada como «Raínha das Ciências», ora carinhosamente descrita como uma «companheira democratizada e querida de todos nós», ora combativamente assimilada, num contorno que se presta e convida a outras extrapolações, a uma permanente tensão de enfrentamento resoluto com problemas perante os quais não há que esmorecer: «em Matemática a regra não é renunciar».
E, efectivamente, toda a actuação e produção de Bento de Jesus Caraça constitui um abnegado desmentido vivo, e persistente, da tentação de sucumbir aos encantamentos e encantos da renúncia.
Por isso me atrevo a afirmar que a ideia, emblemática e geratriz, que preside à sua multifacetada obra é aquela que ele próprio adianta, por diversas vezes, como lema norteador: «despertar a alma colectiva das massas», — ou, como pouco adiante acrescenta, em jeito de maior explicitação: «Precisamos, para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele.».
Na conjuntura carregada de nuvens sombrias em que o escreveu, Caraça tem seguramente uma consciência aguda dos perigos barbarizantes, e da realidade regressiva, de certos «apelos» inflamados, com rufo e trombeta, à demagogia turificadora do vulgo em clima belicoso de reacendida expansão imperialista.
E, todavia, não hesita em persistir na sua propugnação, porque, no fundo desta «palavra de ordem», como seu mais nativo sentido, é um pulsar outro que bate, e que convoca à transformação colectiva e esclarecida do hegemonicamente estabelecido.
Este acordar do povo que se cita e concita é, na verdade, incompatível com o enduro de situações de exploração económica ou de escravatura mental; visa recuperar retardamentos crónicos acumulados (brutalmente «estabilizados» ou com sofisticação induzidos) que debilitam e pervertem o agir unificado dos humanos; impõe inadiáveis «escolhas» subjectivas de orientação, com reflexos no encaminhamento da colectividade, perante ostensivos «dilemas» objectivos que uma «análise cuidada» não prescinde de pôr a nu.
Passada a época das teurgias messiânicas e dos rebanhos docilizados, abre-se uma via de feitura, e desdobra-se um exigente projecto, que urge tomar a cargo: «que cada um se purifique pelo pensamento autónomo e se crie a si mesmo uma personalidade, para que se possa formar uma colectividade de indivíduos fortes, colectividade que saiba, em cada momento, o que lhe convém e como realizá-lo».
Uma ideia, apenas uma «ideia» — repontarão, talvez não sem escândalo, alguns espíritos recalcitrantes, mais propensos a confundir materialismo consequente com tacanhez coisificante.
É porque conhece com justeza o valor das «ideias» que Bento Caraça não prescinde de denunciar com veemência certeira a recorrente tentativa idealista de as hipostasiar em «um ser autónomo» — expediente que mistifica nesse seu putativo estatuto a propositura tranquilizante de «um mundo artificial da permanência».
É porque sopesa com discernimento a influência nefasta de certas ideações com curso propagandeado que fustiga, em franca diatribe ideológica, uns quantos «arrebicados de embalagem a disfarçar o avariado da mercadoria», ideatos aos quais retardatariamente convém «o viajarem sempre em combóio de mercadorias no que respeita à realidade da vida».
É porque não subestima nem descura o papel historicamente emancipador de determinadas representações sociais que, sem pruridos de maior, discrimina claramente entre o grupo daquelas que promovem o avanço da humanidade e a classe das que, assemelhando-se a «um imenso cortejo de espectros», se apascentam do seu «efeito paralisador».
É porque não enjeita, ou esquece, o vigilante exercício da crítica — «provocar sempre, em cada inteligência, o trabalho fecundante do debate» — que ousa proclamar sem rodeios: «agitar ideias, a despeito do que dizem certos escribas abafadores de cultura, agitar ideias é mais do que viver, porque é ajudar a construir a vida».
Neste horizonte — onde rumos definidos se perfilam e desenham —, desenvolve Bento de Jesus Caraça uma ontologia embebida no devir, que à ciência cumpre desvendar, e em que educação, arte, cultura, empenhamento cívico se articulam e entrecruzam, no superior desígnio generoso de um trabalho enriquecido de humanidade.
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