quarta-feira, março 04, 2009

LINHAS DE RUMO DO PENSAMENTO DE BENTO DE JESUS CARAÇA III

3. Uma ontologia que se explicita.
É conhecida a distinção que Marx introduz, em sede de metodologia, no pós-fácio à segunda edição alemã de 0 Capital, entre o «modo de pesquisa» (Forschungsweise) e o «modo de exposição» (Darstellungsweise) no tratamento científico de uma matéria.
À sua maneira, e no âmbito dos seus propósitos propedêuticos, Bento de Jesus Caraça cura igualmente de contrapôr duas atitudes metódicas em face da ciência.
De acordo com a primeira, esta aparece «tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada», parecendo assim «bastar-se a si própria»; nos termos da segunda postura, há que acompanhar o saber «no seu desenvolvimento progressivo», onde se lhe descobrem «hesitações, dúvida, contradições», em que do fundo vem à luz «a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da Ciência».
Radicalizando ainda este instrumento teórico de demanda de inteligibilidade pelo surpreender de patamares diferenciados de abordagem, poderíamos porventura, perguntar: qual é a bateria de supostos ontológicos que sustenta o pensamento de Bento Caraça nas suas diversas vertentes?
Simplificadamente, a resposta que se desenha é a de um apurado e substante sentido da realidade — de contornos abertamente materialistas e processuais, tecido e entretecido de um viver colectivamente humanizado, que, em condições determinadas, se transforma e transforma.
Contra a «sedução alada» do idealismo em voga — esse «novo dialecto verborreico evanescente», exaltado na sua cominação dos «entraves da baixa materialidade», e deliberadamente cego ao manuseio onto-epistemológico da categoria da acção recíproca entre distintos níveis e modalidades do ser —, importa desenvolver, testar, e pôr de pé, em todos os campos, «tentativas de explicação materialista».
Esta nítida orientação assoma, não por preconceituoso apriorismo de capela ou por obtuso arrebique de confinamento rasteiro, mas tão-só porque, na ordem do que se revela primordial e verdadeiramente fundante, «a Realidade existe independentemente da nossa vontade» — ou, como mais adiante se reafirma num desafiante horizonte prospectivo: «a realidade excederá sempre a tua expectativa».
É, então, deste solo originário e originante, assim reconhecido e (re)encontrado, que terão de partir todas as diferentes viagens — teóricas e práticas — de exploração indagadora: «a realidade cuida pouco do que nós achamos ou não intuitivo e a mestra é ela e não nós; somos nós que temos de adaptar-nos a interpretá-la».
Uma despojada profissão de fé materialista — que, mesmo se liminar, muita reflexão preparatória consigo carrega já — não é todavia o bastante. Fundamental é penetrar na arquitectura de estruturação do real, e no movimento que interiormente o anima, delineando quadros e percorrendo linhas conflituais de determinação em que o dialecticamente contraditório a cada passo irrompe como instância e dinâmica constitutivas.
Daí que, tematizadamente, a «interdependência» e a «fluência» se apresentem como «características essenciais» da realidade, num marco generalizado de «interacção» que, admitindo embora o «recorte» abstractivo de «isolados» para efeitos de análise, principialmente exclui qualquer hipostasiação (ontológica) de «absolutos separados». É assim, pois, que «coisas e seres nos aparecem definidos sempre pelas suas relações no meio ou grupo em que estão integrados».
Num jeito que expressa e repetidamente não silencia invocações de Heraclito de Éfeso, o estudo científico do ser não pode fazer economia da consideração do devir. De um modo incontornável, ele encontra-se e palpita no e do coração do próprio real.
Quer quando matematicamemte se aprofunda o «método dos limites», a natureza das «variáveis», ou as «equações diferenciais»; quer quando, em termos de articulação procurada, se convertem em objecto de enfoque regiões e problemáticas mais abrangentes: «Vivemos no meio duma realidade que é mais forte do que as construções metafísicas ou as guitarradas ao luar doutros. E essa realidade é uma mobilidade intensa, uma transformação permanente e em movimento acelerado».
Complexidade e contextualização tornam-se — em registo dinâmico de entrelaçamento na polideterminação — perspectivas ontológicas decisivas de aproximação ao real, cujo potencial e indispensabilidade não podem, em momento algum, ser descurados.
A ontologia subjacente à obra de Bento de Jesus Caraça — mas sempre pronta a aflorar, e a explicitar-se, no tratamento que imprime às variadas questões sobre que se debruça ou em que se envolve — é, pois, materialista pelo seu enraizamento, e profundamente dialéctica em todo o seu exercício de demanda de concreção; no fundo, isto acontece porque ela arranca de uma autêntica compreensão originária do entramado histórico do ser, como processo de totalidade em devir de refiguração.
E aqui tocamos em outro núcleo crucial dos rumos que encaminham o seu pensar e o seu agir. É um verdadeiro centro de gravitação que se des-cobre a cada passo, mesmo quando aparentemente dado em zonas de mais remota periferia.
A «vida real» é a «madre», alimentadora e guia, em que tudo mergulha os seus fundamentos; «na sua constante criação de novidade», «renova-se, não se renega a si mesma, nem regressa».
Este viver real — que não é mera tonalidade subjectiva de uma «vivência», mas constitutiva ingrediência e trabalho do ser — incorpora e mobiliza humanidade, pondo à prova o grau de exigência das suas prestações.
Pela demanda fundada e histórica de saber e pela luta que transforma e enriquece patrimónios adquiridos — lançando mão do «carácter dialéctico da evolução dos conceitos» e de práticas de revolucionamento, que o perdurar de estruturas obsoletas convoca e uma orientação teoricamente ajustada conduz — cabe efectivamente aos humanos, a cada fase de um movimento uno, e do interior do próprio jogo de contradições que os dilaceram, conferir conteúdo e expressão determinados às figuras do devir do real.

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