1. Intróito.
Começo por saudar os Organizadores pela iniciativa benvinda destas celebrações, e por lhes agradecer a subida honra do convite para usar — murmurarão os mais precavidos e os menos benevolentes: abusar — da palavra nesta sessão.
Imagino que, a par de mais uma prova de coragem, terá pesado na decisão de me escolherem para este encargo aquela sentença de Bento de Jesus Caraça, de acordo com a qual «há sempre um filósofo para cada tarefa por mais retorsa e macabra»...
Entendo que a presente comemoração nada envolve de «fúnebre» compasso ou de «contorcida» tristeza — já que, bem pelo contrário, o trazer à memória a acção de um grande homem constitui sempre um exigente e poderoso incentivo ao reexame e à revitalização de tudo aquilo de justo por que lutou.
Do mesmo passo, porém, cumpre-me assumir em pleno a responsabilidade culposa pelo «retorce» no estilo que normalmente emprego e pela «funestação» deplorável que sobre este distinto auditório possa produzir — feitios, e defeitos, há muito empedernidos e falhos de correcção, de que antecipadamente (não sem alguma «má consciência») perante todos me penitencio.
Sustentava Bento Caraça — e praticava-o, no e do interior do seu diversificado magistério — que de «um trabalho de natureza filosófica» deve resultar, «em cada época histórica», um «conjunto de ideias que permitem a construção de uma concepção do mundo».
Procurarei, na esteira do caminho assim aberto, encontrar e formular algumas linhas de rumo do seu pensamento — ainda que dentro das minhas limitações pessoais intransponíveis: de sabença (que me proíbem adentramentos pelo domínio das matemáticas) e de registo biográfico geracional (que me interditaram em absoluto o privilégio do acesso directo ao ensinamento do mestre, riqueza experiencial de que muitos fruíram ao privarem e conviverem com ele, ao longo do seu percurso pedagógico, científico, cultural e cívico).
Tive, portanto, de socorrer-me, para a elaboração do presente exercício hermenêutico, da obra escrita de Bento de Jesus Caraça, na sua forma actual de publicação — forma, ao que julgo saber, felizmente, em vias de enriquecimento pela edição próxima de novos materiais inéditos ou dispersos, e de um acervo mais completo da correspondência.
A releitura a que procedi veio, entretanto, robustecer em mim a convicção inicial de que esta estratégia de demanda das «linhas de rumo» de um pensamento se encontra satisfatoriamente ajustada, não apenas ao objectivo circunstancial de compor este discurso, mas inclusivamente à natureza do teor genuíno da matéria em análise.
Arrisco, assim, a afirmação principial de que, em todos os campos sobre que se debruçou, Bento Caraça tratou deliberada e assumidamente de fazer emergir, como preocupação estruturante do seu esforço intelectual, os vectores de orientação para a vida, originariamente inscritos (mesmo se de imediato indetectados) num emaranhado disperso de factualidades, de informação, de cogitações — por cuja inteligibilidade é indeclinável tarefa progressiva de humanidade perguntar.
Neste sentido, no seu porfiado labor, permaneceu ele próprio fiel, sempre, a um enunciado teorético lapidar que repetidamente avançou, e que com consequência prosseguiu: «Não basta conhecer os fenómenos; importa compreender os fenómenos, determinar as razões da sua produção, descortinar as ligações de uns com outros.».
Tudo isto num escopo, não apenas de ganho ou aquisição de um saber puro gratificante de escolar competente, mas numa perspectiva, e numa prospectiva, de emancipação prática — apontada à edificação solidária e lúcida «duma estrutura da sociedade em que todos os homens possam viver uma vida digna; em que, a uma segurança material para todos, se alie um conjunto de condições que permita o aproveitamento máximo das possibilidades de cada um; em que a liberdade económica, seguida da liberdade intelectual, sejam a base da regulação das relações entre os homens.».
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