4. A ciência, numa dinâmica esclarecida de libertação.
É neste mapa ampliado de desígnios e de realizações que a ciência é chamada a desempenhar a sua mais nobre função emancipadora.
E, neste tabuleiro também, a abordagem dialéctica — desde logo, pela sensibilidade à retro-acção que desperta — volta a revelar-se imprescindível para penetrar, objectiva e subjectivamente, na natureza e nas implicações do empreendimento.
Com efeito, a demanda de ciência (quer como processo, quer como resultado) constitui, em si mesma, um exercício superior de «pensamento criador e livre»; mas, no entanto, ela própria começa por requerer, para dar-se (em regime normal de prossecução, e não num marco de excepcionalidade desgarrada), condições históricas e sociais de liberdade, que favoreçam o seu eclodir e afirmação.
A inteligibilidade conseguida, por seu turno, de património laboriosamente amealhado (um sabido que ciosamente se guarda e entesoura), converte-se, pro-activamente (sobremaneira num espaço de socialização alargada), em factor que potencia a própria liberdade, fortalecendo-a com a possibilidade de orientação no mundo a partir das luzes do saber.
Daí o papel incontornável, ainda que não simplificadamente automático, dos avanços da ciência — e também dos progressos das técnicas — para a edificação de um viver colectivo, partilhando em efectividade generalizada níveis elevados de «bem-estar» à altura das possibilidades proporcionadas pelo estádio de desenvolvimento do tempo, emancipado dos múltiplos jugos e cerceamentos ancestralmente herdados (e reproduzidos a benefício das camadas e estratos dominantes) que o têm afligido e entravado.
É assim que, no cumprimento cumulativo destes desideratos de crescimento e de libertação, do ponto de vista teorético e concepcional, a ciência se tem do mesmo passo que precaver contra a costumeira «rejeição do devir como base de uma explicação racional do mundo» e contra a ainda persistente remissão «do manual e do mecânico para fora do domínio da Cultura». Historicidade do ser socialmente mediado e transformação instrumental das realidades formam, deste modo, um complexo (uno) de articulações (múltiplas) que não pode, segundo uma ajustada medida crítica, deixar de ser tido em consideração.
É certo que, «com o avanço da técnica», igualmente «se cavam as divisões sociais» e se expandem intensificadas manifestações alienantes de coisificação. Importa, todavia, determinar com exactidão o feixe de razões que lhes está na origem, e não incorrer em amaldiçoamentos abstractos (precipitados e confusionistas).
Distribui-se por esta paleta de procedimentos, bem ao gosto (e conveniência) da pregação alarmada de certos sectores, por exemplo, o de «imputar ao desenvolvimento das Ciências da Natureza e às invenções mecânicas um mal que é, exclusivamente, devido à utilização que delas actualmente se faz», passando completamente em silêncio, e deixando a um cauto esquecimento (deliberado), que esse nefasto (e nefando) emprego determinado «depende do estado presente da estrutura da Sociedade e não das Ciências da Natureza em si, no seu espírito e no seu desenvolvimento».
Para Bento de Jesus Caraça, igualmente sob este prisma, é a inequívoca denúncia do modo capitalista de produzir e reproduzir o viver que vem à luz, junto com o premente apelo à responsabilidade colectiva dos humanos na transformação (no limite: revolucionária de condições que viabilizem uma existência dignificada, mais consentânea com as próprias possibilidades que globalmente se encontram já ao dispôr da humanidade.
Neste particular, compreender para transformar significa também combater com lucidez disfarçadas tentações grassantes de homilética soteriológica em torno do regresso redentor a idílios imaginados de singeleza silvestre, cuja efectiva implicação real se revela bem diversa afinal da imediatamente proclamada: «O retorno à vida simples, o abandono da ciência, da técnica, da máquina, não passa de uma divagação lírica de algumas epidermes hipersensíveis [...]. Se amanhã a ciência tivesse de ser abandonada seria, não para passar a um estado melhor de civilização, mas para cair, por muitos séculos, num estado informe de barbaria.».
Com efeito, outros — bem diferentes no conteúdo e intenção — terão de ser os caminhos trabalhosos do futuro.
Fulcral no pensamento, e no magistério, de Bento Caraça é, pois, um principial entendimento da radicação histórica material das actividades — na aparência induzida, e no teor de certas doutrinações — tidas por mais «espirituais» e sobrepairantes: «a Cultura e a Ciência, produtos humanos, acompanham os homens e forjam-se nas suas lutas, nas suas marchas inquietas para fugir ao sofrimento e buscar uma vida melhor».
É porque, tudo bem ponderado, «ciência, filosofia, arte, religiões, têm uma raíz comum — a actividade social homens», que não parece de estranhar que apresentem, no contorno do respectivo desenvolvimento material, vincados cunhos «epocais».
Por outro lado, é igualmente a partir desta primordial inserção contextualizante, de índole onto-histórica, que resulta possível elucidar uma parte substancial das dinâmicas que atravessam o percurso e a determinação dos saberes, contrariando interpretações disseminadas que privilegiam o tratamento «abstracto» ou transcendentalizante destas temáticas: «A Ciência não marcha de acordo com um plano lógico pré-estabelecido, marcha aos repelões, à medida das necessidades dos homens.».
Esta recorrente ocupação — mesmo em textos didácticos de directa e exclusiva intenção matemática — com o esclarecimento histórico-social de enquadramentos genético-problemáticos e de condicionalismos de implantação não representa qualquer assomo descabido de exibicionismo erudito, para edificação de estudante abasbacado; tão-pouco constitui — o que se revestiria de gravidade maior — qualquer especioso diluente metodológico, visando debilitar, a rajadas de pirotecnia haurida de outros domínios, a fundamentação e o rigor dos empreendimentos científicos. Bem pelo contrário.
Mutatis mutandis, algo de semelhante se pode observar no tratamento a que Bento Caraça submete a dialéctica da quantidade e da qualidade, em que esta surge pensada num horizonte constitutivamente relacional e aquela, «não como um objecto», mas como «um atributo da qualidade».
Nada, neste esforço consistente (para alguns, porventura, inusitado ou «excêntrico») de categorialização, inviabiliza ou macula, porém, o lugar inderrogável da dimensão quantitativa no delineamento e determinação do edifício científico.
Esta operação ocorre, desde logo, por razões ontológicas: «à medida que a Realidade se vai conhecendo melhor, o primado tende a pertencer ao tipo quantitativo»; e, de pronto, numa vertente abertamente epistemológica: «o estado propriamente científico de cada ramo [do saber] só começa quando nele se introduz a medida e o estudo da variação quantitativa como explicação da evolução qualitativa».
Nesta conformidade, a questão central, que de modo algum é objecto de artificiosa tergiversação, devém «procurar obter uma teoria quantitativa, da qual resultem métodos de cálculo que nos permitam fazer previsões, sujeitas ao teste da Experiência e da Observação».
À ciência incumbe, nestes termos, como «objectivo final», a demanda de definição de um horizonte de inteligibilidade, «a formação de um quadro ordenado e explicativo dos fenómenos do mundo físico e do mundo humano, individual e social».
A par da compreensão alargada de que a noção de «fenómeno natural» se vê investida, retenhamos a peculiar atenção que neste processo é conferida à conexão que entre domínios dinâmicos se verifica: «a tarefa essencial da Ciência é, não apenas registar os factos, mas, principalmente, descobrir os caminhos que vão de uns a outros».
Sobre um fundo ontológico abarcante jamais abandonado — «a realidade ambiente espacial-temporal é una e é dela que se alimenta todo o nosso conhecimento» —, a ciência, no seu desenvolvimento, tem de pautar-se, não só por exigências de coerência racional (o «acordo da razão consigo própria»), mas também pelos padrões de uma vigilante e permanente con-frontação com o real, na sua materialidade deveniente.
Nestes termos, cabe-lhe a ela acolher e reelaborar a «fluência» de que este se tece, no prospecto fundamental de dele dar razão: «A Ciência não tem, nem pode ter, como objectivo descrever a realidade tal como ela é. Aquilo a que ela aspira é a construir quadros racionais de interpretação e previsão; a legitimidade de tais quadros dura enquanto durar o seu acordo com os resultados da observação e de experimentação.».
Exercício, intrínseco e complexo, de racionalidade concreta in fieri, o conhecimento científico não pode abrir mão da observação cuidada e da experimentação orientada, no marco (indispensável) de uma conjugada acção recíproca de «inteligência» e de «sentidos», ou (para aceitar, sem mais debate quanto à justeza da acepção, terminologia aqui empregue) de «teoria» e de «prática», em que a dialéctica sempre actua, de modo a que, em concreto e acrescidamente, a ciência — sem perda ou diminuição dos seus constitutivos títulos de exigência — por sua vez se converta, na e pela sua democratizada disseminação social, em «instrumento de luta, sempre incompleto, constantamente aperfeiçoado».
Para Bento de Jesus Caraça, o compromisso com a busca do saber guarda o sabor da aventura; corresponde em contínuo a uma «fatigosa jornada do conhecimento», em que as petulantes veleidades sobranceiras do «definitivo» (antecipadamente tranquilizadoras e altamente cotadas no mercado dos leigos) têm que ser, com serenidade responsável, postas de parte.
Esta remoção cauta não ocorre como demonstração de modéstia apenas subjectiva (que ao «sábio», antidogmático confesso e levemente céptico, é suposto quadrar bem), mas porque, na realidade, o que se encontra em causa é uma extensão (em devir) do domínio do inteligível, o qual adiante de si sempre vai projectando novos desafios e tarefas: «em ciência, o alargamento dos horizontes do conhecimento significa sempre o alargamento correlativo do âmbito do desconhecido».
Daí, a profunda radicação processual da ciência — construção, des-construção, re-construção —, a qual nos aparece esboçada como «um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação».
Contra a dogmatização inchada de arquitecturas doutrinais que liminarmente proscrevem e evacuam «o erro» (ao jeito do sistema religioso de crenças), a empresa científica apresenta-se assumidamente como um «caminhar, tacteando, entre o que a intuição nos dá a partir da Realidade e o que a razão nos permite com os instrumentos que forja».
A adopção principial desta posição epistemológica de «tateio», caminhante (e não apenas expectatório), obriga a recolocar em campo de dilucidação crítica toda uma dialéctica de absoluto e de relativo na determinação (a que se não renuncia) do verdadeiro.
Num registo que em alguns ouvidos predispostos poderá ressoar (injustificadamente) como relativismo displicente, «a verdade de hoje é o erro de amanhã, [posto] que certeza e perplexidade se entrelaçam e reagem uma sobre a outra, ao longo desta gloriosa cadeia muitas vezes milenária que é a luta incessante do homem com a natureza e consigo próprio».
Aprofundando o nível da análise, porém, é algo de bem mais matizado o que surge no «entrançado» de «triunfos» e de «fracassos» cognitivos em que no concreto os saberes se movem: «Verdade e erro não podem tomar-se em absoluto, mas têm significado apenas quando apostos contra o seu contexto. De época para época este varia [...]. A Ciência é feita pelos homens para os homens, sujeitos a todas as suas limitações».
Daí a relevância propriamente científica de um estar desperto para a contradição e, em particular, para o papel que à categoria da «negação da negação» cabe, quer no processo ascendente da «generalização», quer como «fonte de criação», em geral: «onde há evolução para um estado superior, é realizada a negação de uma negação».
O determinismo, como sistema objectivo de legalidades quantificáveis, não pode satisfazer-se, pois, de atitudes e fórmulas cómoda ou linearmente «mecanicistas», porque o que concita o nosso poder de explicação é uma totalidade real em devir de que os próprios humanos constituem ingrediência interveniente.
Todavia, nada disto faz resvalar Bento de Jesus Caraça para a ribanceira arriscada da tentação lúdico-poética de converter a ciência em mero «jogo», onde a contrapartida ousada do vale tudo é a admissão prosaica de que tudo se equivale; como ele bem humoradamente observa, dada a base ontológica em que o saber se move e a elasticidade não indefinida do vanguardismo na arte dos sons: «há um limite para a liberdade de linguagem em Ciência, como há um limite para a desafinação em Música».
Em particular na situação seriamente degradada do Portugal do seu tempo, que a política salazarista mais contribuía para agravar, é dentro destes parâmetros concretos de exigência e de rigor que uma encruzilhada decisiva se depara ao conjunto dos cidadãos como ingente requerimento de opção: «ser por uma viragem total no sentido do nosso apetrechamento cultural e técnico, ou ser pelo prolongamento do abismo de ignorância e obscurantismo em que se está fazendo mergulhar o povo português».
Mesmo nesses transes de dolorosa incerteza e de quotidiana adversidade — o grande objectivo, a esclarecida linha de rumo, o propósito indefectível, reafirma os seus traços e contornos de coragem imperativa: «servir a humanidade».
Daí a pertinência, congruente e inadiável, de intervir no sentido de estender todo este conjunto de tarefas emancipadoras aos campos da educação, da arte e da cultura.
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