5. Integralidade e integridade da cultura.
A reflexão — e a actividade organizativa — de Bento de Jesus Caraça em torno da educação, da arte, da cultura, mergulha as suas raízes numa funda compreensão da dialéctica da criatividade, como eixo central de uma ocupação com o viver e a sua destinação.
Trata-se de um exercício inescapavelmente corrente (em si, nada excepcional) que, passando embora muitas vezes despercebido (com as consequências perniciosas para a sua orientação, infelizmente conhecidas), aos seres humanos cumpre realizar e protagonizar, em registo simultaneamente pessoal e colectivo.
Quando repetidamente se insiste em que «onde não há necessidade não há criação», apenas se pretende significar que esta última nunca se dá por ela própria, ao jeito de diletância ornamental ou de suplemento dispensável; antes se determina e ganha estação como proposta positiva de construção num ambiente de carências sentidas, de problemas desafiantes, de aspirações passíveis de materialização entrevista.
Percebe-se, assim, que «toda a vida humana á uma lenta criação, fruto de intervenções do indivíduo e do seu meio, do seu contexto». No entanto, este movimento não é apenas de simplificada parada e resposta; a sua estrutura e decurso revelam-se complexos, e ele próprio rasga, por seu turno, vectores de futuro: «de cada vez que se faz uma criação, abrem-se naturalmente perspectivas».
É neste âmbito de fluência que se abre, então, a clareira (a trabalhar) de uma decidida e decisiva intervenção, intensiva e extensiva, no campo da democratização cultural efectiva.
Estas considerações, por abstractas ou abstrusas que pareçam, na forma que revestem e até no teor que ostentam, possuem, porém, em próprio e em concreto, um tempo e um lugar determinados. Bento Caraça está dessa circunstância plenamente ciente, e é para ela que cuida de alertar, de preparar, de mobilizar.
As vicissitudes mesmas da história — não cegamente desencadeadas por forças sem nome, nem providencialmente dispostas por numinosos poderes, mas que gerações sucessivas moldaram e foram lavrando, dentro e a partir de condições determinadas — conduziram a uma situação peculiar e extrema em que «agora, é toda a humanidade que é chamada a resolver o seu próprio problema, está tudo em causa, há que refazer tudo, e por isso o nosso tempo é o mais perturbado e inquieto de todos os tempos que o homem tem vivido. A ocasião é única também para realizar finalmente um grande passo nessa síntese grandiosa do indivíduo e da colectividade .».
Sem um atento e reflexivo estado de vigília com acúmen crítico cultivado, sem as luzes de um esclarecimento alargado e empenhado, susceptível de enriquecer o conteúdo e de modelar a prospectiva das práticas sociais requeridas — não é possível, portanto, alcançar a massa crítica indispensável aos cometimentos societais que a especificidade do tempo suscita e estimula: «só pela meditação se pode formar o tipo de homem que há-de enfrentar e resolver os problemas que estão aí diante de nós».
Nas condições imperantes no salazarento Portugal da altura — onde desde o raquitismo político artrítico até à vivência tolhida das relações sociais elementares — grassava, respaldado em musculados tremores, um surdo temor e uma desconfiança endémica, o caminho (espinhoso) a prosseguir levanta de pronto uma tarefa incontornável: «a primeira coisa a fazer para sermos gente é extrair o medo dos corações dos portugueses, fazendo deles homens generosos e fortes, libertos da grilheta da mais aviltante das escravidões».
A esta luz de uma coragem e iniciativa que se pretende reacordar e reconquistar, «o património cultural comum da humanidade» adquire uma relevância focal para todo um programa consistente a desenvolver, no sentido de o trazer na realidade à consciência de todos, no quadro de uma apropriação efectiva e enriquecedora que o converta em potencial ou cabedal a empregar no delineamento de uma marcha de dignificação partilhada.
A cultura devém, assim, «o conjunto de todas as aquisições gerais — materiais, intelectuais, morais e artísticas — postas à disposição do homem como seu património comum. E porque esse património é obra colectiva de toda a humanidade produtora, ele está, ou deve estar, aberto a todo o homem para lhe favorecer, por sua vez, o desenvolvimento, isto é, aumentar as suas possibilidades».
Integralidade multiforme de adquiridos e integridade socializada de acesso fundam, portanto, este emergir (livre e libertador) da dimensão cultural como solo partilhado e trabalhado de uma configuração do mundo que se prolonga, além do domínio do existente, em direcção a uma exploração transformadora do real, que criticamente toma a cargo (na teoria e pela prática) o leque de possíveis que adiante de si pro-jecta.
Havendo, de um ponto de vista nocional, lugar ao estabelecimento de uma discriminação (ponderável e luminosa) entre «civilização» e «cultura, entre «ser culto» e «saber muitas coisas», entre o «elitista» e o «popular», entre «especialismo» e «divulgação» — acontece que o determinante, em qualquer caso, se encontra, não na excogitação multiplicante de «distinções artificiosas», segundo o campo e ângulo de análise a considerar, mas na descoberta (accionalmente vivificada e densificada) de uma unidade de género: a «cultura humana».
Daí o imperativo — ético-político, educativo, e, no fundo, radicalmente humano — de laborar, sem esmorecimentos e com confiança, no sentido da «extensão progressiva do património cultural comum», já que é também a própria cultura (designadamente, na acepção recolhida na nota 100) que se desenha e perfila como indicador decisivo, para um povo, do «grau de qualidade da civilização» que ostenta.
Nunca perdendo de vista — e convocando mesmo para os meandros da argumentação expendida — a evolução económica e social dos próprios diferentes aparelhos de formação que se foram sucedendo ao longo da história, Bento Caraça pronuncia-se, então, com meridiana clareza «condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite», em que «o dinheiro» devém «o elemento fundamental da selecção».
Reconhecendo embora a dedicada e legítima função de «grupos especializados» no «cultivo e progresso da ciência», a abordagem estratégica para esta temática na sua globalidade tem, no entanto, de assumir um carácter totalmente diferente, quando o que verdadeiramente se encontra em causa é o acesso e disposição de uma plataforma ampla de saberes com forte impacte na orientação e condução da vida: «o que não pode nem deve ser monopólio de uma elite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais».
Retoma-se, assim, em termos alargados e em condições transformadas, um dos pilares mestres do programa emancipador da modernidade, segundo um vector radicalizante da democratização e do enriquecimento dos campos e conteúdos por que se manifesta: a perfectibilidade do género humano como problema e tarefa.
Posto que — removidas as tentações de fixismo ou de inelutável repetição do mesmo, que visam justificar e perpetuar estados de coisas instalados (assim consagrados como «naturais» ou inultrapassáveis) — «o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável», impõe-se, em conformidade, «promover a cultura de todos», uma vez que esta «é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante».
Neste horizonte de mobilização e de luta, assomam, designadamente, como traços constitutivos da cultura a incentivar: devolver a cada homem «a consciência integral da sua própria dignidade»; proporcionar e preencher activamente um espaço de liberdade, entendida como «o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais»; fomentar a eclosão e disseminação do «espírito de solidariedade», apontado à «formação da pátria humana» e à «fraternidade real dos povos».
Em termos de integridade cidadã, a cultura representa, assim, «um direito inerente ao homem» (e não «um favor, mais ou menos disfarçado, da administração pública») que, por conseguinte, tem que ser objecto de diligente «extensão» e «democratização».
Em termos de integralidade no seu teor, a cultura tem de abrir-se no espectro de interesses que incorpora, não podendo deixar de fora do seu cultivo e compreensão aspectos — tradicionalmente desconsiderados ou menos prezados, em virtude de antigas estratificações sociais modificadamente perdurantes — de natureza prática e de inserção comunitária.
É neste marco de alongado alcance, e carregando toda esta fundamentação histórico-doutrinária, que surgem as conhecidas reivindicações estruturantes: da igualdade perante a Escola («uma só condição, uma só dignidade, uma só escola»); da escola única, como «etapa histórica», susceptível de materializar «uma grande aspiração para a luz», posto que «condição necessária de progresso da civilização»; da gratuitidade do ensino «em todos os seus graus: primário, secundário e superior».
Aproveito este último particular para pôr em destaque que a desmontagem a que Bento Caraça procede do argumentário (oscilante entre o imediatismo tosco e a sofisticação afectada) daqueles que elevam a voz ou brandem a pena contra o carácter gratuito do ensino público conserva ainda hoje, desafortunadamente, uma inultrapassada actualidade, pelo que a sua leitura e meditação vivamente se recomendam.
Percuciente se revela, do mesmo modo, a sua documentada análise crítica da «profunda contra-reforma» então em curso no que toca ao sistema educativo, bem como o seu conjunto pertinente de observações quanto à decrepitude e desajustamento social das Universidades (de onde, para cúmulo, as melhores cabeças, porque mais incómodas para o regime salazarista, eram expulsas), onde assentou arraiais uma rotineira ensinança «sebentarizada» (que ele castigadamente não poupa), e em cujos currículos de estudos gostaria de não ver cavar-se cada vez mais o abismo de incomunicação entre formações «literárias» e «científicas», desprezando-se assim, precisamente, a promoção de um núcleo cultural comum que deveria constituir o verdadeiro cimento da universalidade da sua missão.
É contra este estado de coisas (acinzentado, porque repressivo, estagnante, entorpecente) que Bento de Jesus Caraça enérgica e infatigavelmente se desdobra — pela palavra escrita e dita, bem como no plano organizativo — em actividades de denúncia e esclarecimento, mas também de construção socialmente empenhada.
A par de iniciativas académicas, de índole editorial e de investigação (como a Gazeta de Matemática ou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia), avulta certamente o lançamento da «Biblioteca Cosmos» (procurando dar corpo ao seu exigente sentido da «vulgarização científica»), ou a criação da Universidade Popular Portuguesa, cujo «fim exclusivo» era «contribuir para a educação geral do povo português», sem jamais esquecer a colaboração estreita dos sindicatos neste empreendimento cultural, tão ambicioso quanto necessário, já que, como critério que ele próprio estipula, a «utilidade» e «justificação» dessa Universidade dependem da «libertação espirtitual que der às massas trabalhadoras».
Em todo este buliçoso movimento — multifacético na sua expressão articulada — de demanda e fomento de emancipação, num quadro que deliberadamente não descura as potencialidades e eficácia da dimensão cultural, seja-me permitida uma referência breve (e quase esquemática, mas indicativa) ao papel da arte.
Segundo Bento Caraça, a arte, na diversidade dos seus géneros e orientações estéticas, inscreve-se desde os primórdios nesta milenar cadeia da cultura como um específico factor de grande peso — desde logo, numa quádruple vertente:
Porque nela se reflectem as condições e aspirações de um agregado social determinado; porque ela própria representa um indicador de civilização na marcha que imprime às suas produções; porque — em especial, quando não se afunda em «derivativo», «adormecimento» ou «evasão do real» — ela, «sem ser obra de propaganda, representa um admirável veículo de difusão de ideias e um potente aglutinador de sentimentos»; porque, genuinamente praticada e compartida, a ela advém uma nobre e gratificante função de «agente de comunhão humana».
Em períodos de amorfismo desmobilizador — «confusos, de fracas impulsões básicas» —, irrompe amiúde nos artistas uma perplexidade difusa que, bastas vezes, os conduz «a recolher-se ao formalismo», sucumbindo aos chamamentos da «pureza» e da «extra-contingência», que caracterizam as propaladas magnificações conhecidas da «arte pela arte».
Aliás, a este respeito, convém não esquecer que o domínio artístico constitui ele próprio um apetecido e privilegiado terreno para a luta ideológica (com reflexos em paragens que em muito o transcendem): «os campeões habituais da liberdade absoluta em arte são precisamente aqueles que a querem e procuram manter na mais odiosa das escravidões — a do conformismo aos interesses de classe [estabelecidamente dominantes]».
É certo que o artista — com frequência empurrado pela ditadura do gosto do público (ele próprio objecto de desvairadas manipulações, ora escanqueiradamente grosseiras, ora recatadamente subtis) — também não se encontra imune às tentações de fazer do seu produto ocasião e instrumento de escapismo, de demissão e fuga perante a desagradável «dureza» das realidades.
Em transes dessa natureza, importa recordar e dar a ver como aí, encapotadamente ou sob a bênção das mais «atendíveis» razões, é a alienação que espreita e se intromete, com o seu cortejo de efeitos devastadores: «o espírito, quando se evade, diminui-se, renuncia, aceita antecipadamente tutela estranha, a derrota de si mesmo».
Todavia, estes não são os únicos sendeiros que, nesta matéria, aos criadores se deparam. Ao artista comprometido com a realidade e com o seu povo, impregnado de uma compreensão dos problemas e tendências da sua época, confronta-o a missão (esteticamente humanizante) de «tomar consciência do movimento e passar à sua transmutação artística», alimentando um circuito (crítico-educativo) de fruição e de recepção, susceptível de «aproximar os homens» para o desempenho das suas tarefas de humanidade.
Vemos, por conseguinte, que, no pensamento de Bento de Jesus Caraça, «laicismo, interesse colectivo, democratização integral da cultura» desenham um carpinteiramento sustentado de formação apontada à entrada em cena do «homem novo, criador da cidade nova».
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2 comentários:
CRN
Com falta de tempo mas sem querer de dar uma palavra amiga, em dia de aniversário comum.
TOMAR PARTIDO
Tomar partido é irmos à raiz
do campo aceso da fraternidade
pois a razão dos pobres não se diz
mas conquista-se a golpes de vontade.
Cantaremos a força de um país
que pode ser a pátria da verdade
e a palavra mais alta que se diz
é a linda palavra liberdade.
Tomar partido é sermos como somos
é tirarmos de tudo quanto fomos
um exemplo um pássaro uma flor.
Tomar partido é ter inteligência
é sabermos em alma e consciência
que o Partido que temos é melhor.
Ary dos Santos
Beijo
Ana,
Sigamos, parabéns.
A revolução é hoje!
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