terça-feira, março 10, 2009

O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, de Engels a Desmond Morris

"Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida em que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfato muito mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do tacto, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através do trabalho.

O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.

Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos — que na história da Terra têm uma importância menor que um segundo na vida de um homem — antes que a sociedade humana surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas árvores. Mas, afinal, surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições geográficas ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhe oferecia, se exceptuarmos a acção inconsciente da manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da população simiesca tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de seus animais mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes dissipadores de alimentos; além disso, com freqüência, destroem em germe a nova geração de reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não respeita a cabra montesa que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se, deixaram nuas todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a efeito pelos animais desempenha um grande papel na transformação gradual das espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos registrados pela história, assim como pelo dos selvagens actuais mais primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que pudesse manifestar-se activamente a vida propriamente animal. E quanto mais o homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os animais. Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física e independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência da dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração. Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o facto de que, em uma ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é uma questão que não tem hoje para nós a menor importância.

O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se directamente para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em examinar minuciosamente suas conseqüências.

O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a superfície habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por iniciativa própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os animais domésticos e os insectos parasitas — não o conseguiram por si, mas unicamente acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da pátria original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e inverno, criou novas exigências, ao obrigar o homem a procurar habitação e a cobrir seu corpo para proteger-se do frio e da humidade. Surgiram assim novas esferas de trabalho, e com elas novas actividades, que afastaram ainda mais o homem dos animais."

(Engels)


"Quando se contam histórias, comete-se muitas vezes o abuso de separar as diferentes partes, como se cada progresso conduzisse a outro, mas essa atitude é completamente falsa e enganadora. Os primeiros macacos terrestres possuíam já grandes cérebros de alta qualidade. Tinham bons olhos e mãos capazes de agarrar eficientemente as presas. Pelo fato de serem primatas, tinham também, inevitavelmente, um certo grau de organização social.
À medida que as circunstâncias os obrigavam a aperfeiçoar-se na matança das presas, começaram a ocorrer modificações vitais: tornaram-se mais eretos — correndo melhor e mais rapidamente; as mãos libertaram-se das atividades locomotoras — permitindo empunhar armas com mais força e eficácia; os cérebros tornaram-se mais complexos — tomando decisões mais rápidas e inteligentes. Tudo isso não se sucedeu segundo uma ordem bem estabelecida; os vários progressos foram-se acentuando ao mesmo tempo, com pequeninos melhoramentos de uma ou outra qualidade, cada um dos quais estimulava outros aperfeiçoamentos. A pouco e pouco ia-se formando um macaco caçador, um macaco assassino.
Pode-se objetar que essa evolução poderia ter conduzido a um progresso menos drástico, originando um assassino mais parecido com o cão ou com o gato, uma espécie de macaco-gato ou de macaco-cão, através de um processo mais simples de desenvolvimento dos dentes e das unhas em forma de ar¬mas selvagens, como as fauces e as garras. Mas isso teria colocado o macaco terrestre primitivo em competição direta com os gatos e cães que já existiam, e que eram assassinos muito especializados. Corresponderia a uma competição baseada nas condições já existentes, e o resultado não poderia deixar de ser desastroso para os primatas em questão. (Ao que se sabe, essa hipótese pode mesmo ter-se dado com tão maus resultados que nem sequer teria deixado vestígio.) Em vez disso, fez-se uma tentativa completamente nova, em que se empregaram armas artificiais em lugar de armas naturais, o que deu resultado.
Seguiu-se a passagem da fase de utilização de instrumentos à do respectivo fabrico, o mesmo tempo que se aperfeiçoaram as técnicas de caça, em relação tanto às armas quanto à cooperação social.
Os macacos caçadores dedicavam-se à caça coletiva e, à medida que aperfeiçoavam as respectivas técnicas, aperfeiçoavam igualmente os métodos de organização social.
Quando os lobos caçam, dispersam-se depois do ataque, mas o macaco caçador já tinha um cérebro muito mais desenvolvido que o do lobo, pelo que podia utilizá-lo em problemas complicados, como a comunicação de grupo e a cooperação. Podia assim atrever-se a manobras cada vez mais complexas. O cérebro continuava a crescer.
Essencialmente, havia um grupo de machos caçadores. As fêmeas estavam já muito ocupadas em criar os filhos para poderem participar ativamente na perseguição e na captura das presas.
À medida que aumentava a complexidade da caça e as expedições se tornavam mais longas, o macaco caçador teve de abandonar os caminhos sinuosos e nomadas dos seus antepassados. Era necessário ter uma base fixa, um local para onde trouxesse os despojos, onde se mantivessem as fêmeas e as crias e onde pudessem partilhar a comida.
Como veremos adiante, esse passo teve uma influência profunda em muitos aspectos do comportamento dos macacos pelados, mesmo dos mais requintados que hoje existem.
Desse modo, o macaco caçador tornou-se um macaco territorial. Todas as suas normas sexuais, familiares e sociais começaram a mudar. A antiga forma de viver, vagabunda de apanhar frutos aqui e acolá, foi desaparecendo pouco a pouco. O jardim do Paraíso tinha, de fato, ficado para trás. Daqui para o futuro, tratava-se de um macaco com responsabilidade. Começou a preocupar-se com os equivalentes pré-históricos das máquinas de lavar e dos frigoríficos. Começou a desenvolver o conforto caseiro — fogo, despensa, abrigos artificiais.
Mas temos de ficar agora por aqui, senão afastamo-nos do domínio da biologia e embrenhamo-nos no da cultura. A base biológica de todo esse progresso reside no desenvolvimento de um cérebro suficientemente grande e complexo que permitiu que o macaco caçador evoluísse. Mas a forma exata assumida por esse progresso já não depende de uma orientação genética específica. O macaco da floresta, que se tornou macaco terrestre, que se tornou macaco caçador, que se tornou macaco territorial, acabou por se tornar macaco culto e devemos parar temporariamente aqui.
Vale a pena insistir mais uma vez em que não nos interessam neste livro as explosões culturais maciças que se seguiram, das quais o macaco pelado se sente hoje tão orgulhoso — a progressão dramática que o conduziu, apenas em meio milhão de anos, da fase em que começou a fazer fogo ate a construção de um foguete espacial. É, sem dúvida, uma história emocionante, mas o macaco pelado pode deslumbrar-se a tal ponto que se arrisca a esquecer que por baixo da sua brilhantíssima aparência continua a ser em muitos aspectos, um primata. (Um macaco é um macaco, um velhaco é um velhaco, quer se vistam de seda ou de trapo...) Até o próprio macaco espacial precisa urinar.
Só poderemos adquirir uma compreensão objetiva e equilibrada da nossa extraordinária existência se lançarmos um olhar duro sobre as nossas origens e estudarmos os aspectos biológicos do actual comportamento da nossa espécie.
Se aceitamos a história da nossa evolução tal como atrás foi resumida, há um facto que se impõe com clareza: desenvolvemo-nos essencialmente como primatas de rapina. Isso torna-nos únicos entre os macacos e símios existentes, mas conhecem-se transformações semelhantes em outros grupos zoológicos. O panda gigante, por exemplo, é um caso típico do processo inverso. Enquanto passamos de vegetarianos a carnívoros, o panda passou de carnívoro a vegetariano e em muitos aspectos, é uma criatura tão extraordinária e única como nós. Isso se explica porque uma grande transformação desse gênero produz um animal com dupla personalidade. Uma vez dobrado o limiar, assume-se o novo papel com grande energia evolutiva — tão grande, que se conservam algumas das características anteriores. Ainda não houve tempo para se libertar de todos os velhos traços, mas apressa-se a adquirir novas características."

(Desmond Morris)

A revolução é hoje!

2 comentários:

Zorze disse...

CRN,

Muito bons estes dois artigos que trouxeste. Elaborados por dois grandes pensadores. Entre a biologia e a antropologia fazem um historial sintetizado da evolução do macaco ao homem.
O conceito de que proporcionalmente à idade da Terra ao aparecimento do homem até aos dias de hoje foi como se de um segundo passasse na medição de tempo por nós convencionada.

Esse conceito está muito bem explicado no livro de Carl Sagan - Dragões de Éden. Também explica "o medo de cair", informação essa que foi passando geneticamente até aos dias de hoje. Medo que remonta ao tempo dos macacos que saltavam de árvore em árvore.

Também interessante a questão da alimentação no segundo artigo. De facto com a evolução organizativa aliada ao progresso tecnológico, cada vez mais, perdemos menos tempo na alimentação.
Quando outrora se ocupava o dia inteiro, foi gradualmente diminuindo esse tempo. Hoje perde-se pouco tempo com a alimentação. Apesar dessa evolução não ser uniforme no Planeta.

Concordo também com Morris, quando afirma que se mantém traços oriundos da descendência. Poderíamos ir até a nossa descendência reptiliana anterior à dos símios.
Mas de facto com a alimentação à base de carne fonte de proteínas importantes para o cérebro, houve variantes de macacos que se desenvolveram mais rapidamente que outros, na evolução da caça também desenvolveram técnicas guerreiras cada vez mais sofisticadas. Que utilizaram não para a partilha de outros grupos que ainda "vegetativos", mas sim, para os dizimar.
Esse espírito de actuação ainda está bem enraizado na forma comportamental do ser humano.
Que ainda é fortemente territorialista e com apetite aguçado de invasão de outros semelhantes para lhes subtrair as suas riquezas naturais.
De referir também, a questão dos saltos evolutivos. É um tema que não tem consenso entre os antropólogos. Pois existem ocasos na história.

Por outro lado, existem pequenas partes da população que vão desenvolvendo ciências e conhecimentos com níveis de complexidade cada vez mais elevado.

Abraço,
Zorze

Anónimo disse...

Zorze,

Aqui tens um macaco similar àqueles que nos têm desgovernado:

http://www.tsf.pt/paginainicial/AudioeVideo.aspx?content_id=1167131

A revolução é hoje!