quinta-feira, novembro 11, 2010

A Cultura Integral do Indivíduo - Problema central do nosso tempo

(...) Vejamos se nos aparece assim, ao menos nas suas linhas gerais, alguma lei à qual se subordine todo o desenvolvimento que a história nos apresenta ao longo do extenso caminho percorrido, desde o aparecimento dos primeiros agrupamentos humanos até às sociedades de hoje.
Creio que essa lei existe e que pode formular-se, pouco mais ou menos, nos seguintes termos: no seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários -o individual e o colectivo -de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio – o individual - chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo.
Demoremo-nos por alguns instantes na explanação da ideia contida neste enunciado que, receio muito, corre o perigo de, à primeira vista, vos aparecer como paradoxal.
Nos primeiros grupos humanos, em que aquilo que distingue o homem dos outros animais se encontra ainda mal liberto da ganga da irracionalidade primitiva, não há lugar para mais do que para os instintos e sentimentos gregários, num estado de existência em que o indivíduo mal tem consciência de si, fundindo-se no agrupamento de que depende. É só a pouco e pouco que os mais aptos, os mais capazes pela força ou pelas qualidades de observação, se vão elevando acima do grupo, destacando-se dele, impulsionando-o e fazendo-o progredir.
O esforço individual aparece assim como indispensável para o progresso do agregado que, sem ele, permaneceria sempre tal qual nasceu, como acontece, por exemplo, com certas associações de animais inferiores que hoje vemos.
Mas essa acção do individual sobre o colectivo não tem apenas, infelizmente, a virtude criadora de progresso que lhe acabamos de assinalar. Bem depressa ela se manifesta com outros caracteres que formam o cortejo sinistro do domínio do indivíduo sobre o grupo -o mais capaz só subsidiariamente põe o seu esforço ao serviço do agregado; a sua primeira ideia é servir-se dessa capacidade maior para seu interesse próprio. E aqui reside o grande drama em que, de todos os tempos, se tem debatido a humanidade -condenada a só poder evolucionar e progredir sob a acção vivificadora e fecunda de alguns dos seus indivíduos, ela vê-se ao mesmo tempo impotente para impedir que esses indivíduos se transformem em seus verdugos. Ela assiste, incapaz de o evitar, à criação das castas que são como outras tantas sanguessugas sobre o seu corpo, sem, ao menos, lhe restar a solução de as eliminar, porque isso equivaleria à sua morte no pântano estéril da incapacidade.
Encarada sob este ângulo, a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo. Luta gigantesca, e trágica, e sangrenta, em que transparece um domínio quase permanente do individual sobre o colectivo e, de longe em longe, um estremecimento do grande corpo mortificado, um movimento de revolta, um triunfo efémero do colectivo, que logo cai sob outro ou o mesmo jugo pela sua incapacidade de se reconhecer e dirigir. E esse grande corpo, curvado ao peso dos seus donos, segue o seu caminho sem parar, cai aqui, levanta-se além e aspira, aspira sempre a qualquer coisa de melhor. Mas esse «qualquer coisa» é vago e impreciso e, por isso mesmo que o é, leva a todos os desvios e todos os erros, pressurosamente amparados e com cuidado mantidos, precisamente por aqueles -o princípio individual em acção -a quem uma consciência colectiva forte ameaçaria
no seu poderio egoísta. (...)
Bento de Jesus Caraça

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