O Ensino Superior Para Além de Bolonha
O Ensino Superior é um bem público, como é também um bem privado, mas com externalidades públicas; a sua natureza humanista e universal (no que comporta de ensino e investigação) confere-lhe propriedades de bem público internacional, o que abre espaço tanto para a concertação intergovernamental como para a jurisdição supranacional, que a União Europeia pretende impor através do Espaço Europeu do Ensino Superior (o quadro conceptual e organizativo) e o processo de Bolonha (o processo de mobilização e transformação para o atingir). O Ensino Superior deixa de ser um bem público, supervisionado pelo estado soberano e exercido por estabelecimentos com autonomia científica e pedagógica; vários níveis de responsabilidade intervêm e diluem-se, facilitando a condução por uma visão centralizadora. A Estratégia de Lisboa (Março de 2000), com enfoque fundamentalmente económico, tomou de assalto a política do Ensino Superior, entre outras, sem sequer nomear o processo de Bolonha já iniciado, mas que iria incorporar e legitimar como instrumento da Comissão Europeia e demais órgãos da União. Desde o Conselho de Ministros de Barcelona (Março, 2002), o processo de Bolonha deixou definitivamente de ser um processo de voluntária harmonização protagonizado pela Associação das Universidades Europeias (EUA) ou a Associação Europeia das Instituições de Ensino Superior (EURASHE), para passar a ser mandatório para os Estados membros e sujeito à superintendência da Comissão Europeia.Na sequência dos desenvolvimentos do processo de Bolonha, o Ensino Superior deixa de seguir padrões de serviço público nacional e passa a seguir padrões e a ser tratado como um bem público de dimensão regional (a União); assim também, vê-se alvo de regulamentação no âmbito dos “Serviços de Interesse Económico Geral” (Directiva Bolkestein), como tal tratado como serviço comercial sujeito às regras do mercado único. A formalidade da consulta pública sobre do Livro Verde sobre Serviços de Interesse Geral foi ultrapassada pela denegada ratificação do Tratado para a Constituição Europeia - que essencialmente já consagrava mecanismos e condições para que, por maioria do Conselho ou decisão da Comissão, as soberanias dos países fossem individualmente violadas e, concretamente, os seus sistemas públicos de Educação devassados por interesses comerciais. Após o desaire da ratificação do Tratado de Constituição, os poderes económicos Europeus tiveram de reconsiderar como e por que via avançar nos seus mesmos propósitos; a Comissão Europeia, após passagem com alterações da Directiva no Parlamento Europeu (Fevereiro 2006), propõe-se levá-la a Conselho de Ministros. De registar que o Ensino Superior não é excluído do elenco dos “serviços de interesse geral” pelo que o processo de Bolonha poderá prosseguir livremente seus trâmites até às últimas inconfessadas consequências. Mas para além da liberalização do mercado interno, a ambição da União Europeia pela competição mundial leva-a a aderir ao Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS) negociado nas rondas do Uruguai da OMC, que visa a progressiva liberalização da prestação de serviços no plano mundial; a Educação é um dos domínios em que são menos numerosas as adesões e mais discutível a aplicabilidade das normas da liberalização; mas a ideologia neoliberal vai pressionando a sua abertura. A Comissão Europeia já assumiu compromissos limitados no domínio da Educação no quadro do GATS; não foi mais longe por pressão da opinião pública mobilizada em Março de 2003 aquando da cimeira da OMC em Cancun. Mas, sendo certo que alguns dos seus estados membros já activamente prosseguem essas políticas (Reino Unido por exemplo), a permeabilidade do “mercado único” implicará que não só esses países Europeus como também países terceiros aderentes ao GATS no domínio da Educação (destacadamente os EUA e a Austrália) ganharão acesso a qualquer outro país no espaço Europeu do Ensino Superior, mesmo independentemente de uma eventual abertura integral da União ao Acordo no domínio da Educação.Este GATS permite diversas modalidades de prestação de “serviços de ensino” comercializáveis: por exemplo oferta de ensino “on-line” por universidade estrangeira, mobilidade de estudantes para o estrangeiro, universidade estrangeira estabelecendo uma filial, um professor ministrando ensino em país estrangeiro; estas modalidades são-nos já mais ou menos familiares no âmbito da União, mas tenderão a multiplicar-se e a integrar novos protagonistas não Europeus. De notar que algumas modalidades de exercício da liberalização no âmbito do GATS são modalidades já postas em vigor no quadro do processo de Bolonha, que assim surge como um facilitador que eliminou barreiras ao livre comércio de serviços no domínio do Ensino Superior.Em Portugal, iniciativas de promoção de agentes privados e de intermediação de universidades estrangeiras, feitas por certas ONG e outras entidades, agora também pelo próprio governo socialista nos casos do MIT, CMU e Universidade do Texas, são sintomas de que o “vazio” criado pela demissão do Governo no cumprimento de políticas de interesse público está a ser preenchido por novos “fornecedores” de Ensino Superior; a própria infra-estruturação das telecomunicações em banda larga é facilitadora indirecta de uma presença mais forte de instituições de ensino estrangeiras bem dotadas e promovidas. A acreditação Europeia e as “relações públicas” se encarregarão de criar o quadro de credibilidade de um novo cenário de oferta de Ensino Superior no nosso país.Está em causa se o sistema Europeu de Ensino Superior ganhará ou perderá no seu confronto entre blocos político-económicos mundiais; esse é um problema dos grupos capitalistas em confronto; mas esse confronto não é a causa dos povos Europeus que vêm sacrificado o seu acesso universal e gratuito à Educação.Esta não é a reforma que o Ensino Superior necessita. A reforma necessária exige a reconfiguração do Ensino Superior público, com a integração num sistema harmonioso de todas as universidades e institutos politécnicos, com respeito pela identidade, especificidade e criatividade de cada instituição e a definição de um quadro geral de áreas científicas no ensino superior ainda flexível e evolutivo. Deve ser deixada aos Estados nacionais a capacidade de desenvolverem os seus sistemas nacionais de acordo com as suas prioridades e níveis de desenvolvimento.O Ensino Superior público deve habilitar os cidadãos para serem os criadores de um país avançado, consciente e democrático.O sistema público de ensino superior deve assegurar: a concretização da democratização do acesso e da fruição de níveis superiores de instrução e cultura; a garantia de liberdade de ensino e de aprendizagem; a oferta coerente de ensinos diversificados, relevantes e de qualidade e que cubram o território nacional; a existência de infra-estruturas estratégicas e o seu funcionamento. Deve criar-se um novo e mais justo regime de acesso ao ensino superior para a rápida expansão do Ensino Superior Público, com a abolição das restrições quantitativas globais (numeri clausi). Este regime deve harmonizar as necessidades de desenvolvimento do País com as opções e preferência dos candidatos, mediante um sistema de acesso que tome como fundamental a avaliação contínua no Ensino Secundário, complementada com a realização de provas nacionais de capacidade absoluta.O Ensino Superior é uma questão nacional e não meramente individual, pelo que o seu financiamento deve ser entendido como um investimento sobretudo no País e não apenas no indivíduo. Neste sentido o PCP defende a revogação da actual Lei do Financiamento do ensino superior e a aprovação de novas regras, contidas num novo diploma legal, sem recurso ao pagamento de propinas, onde os níveis de financiamento sejam os adequados de forma a garantir um ensino e uma investigação de qualidade, possibilitando que os estabelecimentos de ensino se possam afirmar responsavelmente autónomos do poder político e independentes do poder económico.A Investigação e Desenvolvimento é parte integrante da missão das diversas instituições do Ensino Superior e, como tal, tem de fazer parte do quotidiano dos seus docentes. A investigação deve estar intimamente ligada ao ensino, de forma que o envolvimento dos docentes nas duas vertentes da sua actividade seja estimulante e útil, quer para o seu trabalho, quer para o trabalho dos alunos.
2 comentários:
CRN
A instrumentalização que se está a tentar fazer do Ensino é o maior retrocesso pós 25 de Abril, o mais camuflado e o mais perigoso, porque os seus efeitos terão repurcussões ao nivél da capacidade de reacção da população.
Isto muito sinceramente, como mãe assusta-me muitissimo.
Como mãe, atenta, preocupada com o futuros dos meus e dos outros, agradeço muito este conjunto de refexões (ainda não acabaram pois não?).
Beijões
Olá Ana,
Já acabaram.
Não poderia ficar tranquilo se não deixasse aqui este dcumento, também sou pai!
Cumprimentos.
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